Cida Bento realiza, em sua obra mais conhecida - Pacto da branquitude (2022) - um movimento de escrita muito comum nas teorizações desenvolvidas por outras autoras do feminismo negro e pós-colonial brasileiro, seja ele marxista ou não, vide Lelia González e Sueli Carneiro, a saber, uma mistura de tons ensaísticos e relatos de vivências (autoetnografia) com uma forte conceitualização teórica e metodológica. Para a autora, não existe um “broblema negro no Brasil”, e sim um “problema nas relações entre pretos e brancos” (Bento, 2022). Nesse ponto, mudando a perspectiva engendrada por ela, há, no Brasil, um problema do branco. Portanto, torna-se necessário que haja debates acerca dessas relações de dominação e suas intersecções com os problemas de gênero, sexualidade e classe social.
Quando Bento esboça o pacto da branquitude, ela faz uma afirmação com tons de humor ácido, mas que demonstra de forma muito clara seu ponto. “É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse [...]” (Bento, 2022, p. 18). O pacto da branquitude é também narcísico por incorporar o eu branco como referente absoluto na manutenção do status quo das relações inter-raciais. Enquanto o branco é visto como normal, o negro é o anormal, ou seja, a constituição ontológica do negro se dá por meio de uma negatividade frente ao Outro branco (Sueli Carneiro). Bento partirá do pressuposto de que o sentimento de ameaça que o negro apresenta para o privilégio branco está no cerne do preconceito racial, argumento que foi posto por Frantz Fanon décadas antes em Pele negra, máscaras brancas, mas focando no medo biológico do branco contra o negro.
Ao problematizar a herança histórica recebida pelos descendentes dos senhores de escravos e destes trabalhadores que tiveram sua constituição ontológica negada por meio de um processo de reificação do ser em ferramenta de trabalho, Cida Bento situa esses bens testamentários simbólicos e concretos como sendo ambos constituídos através de um mesmo denominador comum: a dor de milhões de homens, mulheres e crianças que foram escravizados, torturados, multilados e mortos. Ela afirma, com razão, que os benefícios deixados aos brancos por seus antepassados escravocratas são pouco falados quando comparados às vicissitudes decorrentes da escravidão para os atuais povos negros, criticando principalmente Florestan Fernandes.
A necessidade de debater o pacto da branquitude surge, portanto, para que seja possível pensar futuros outros para os que vêm sendo construídos com o genocídio da população negra e periférica, a fome, falta de empregos, de dignidade e de condições de subrevivência para essas pessoas. É necessário que criemos “outros pactos civilizatórios”. Relacionando e parafraseando a teoria do contrato racial de Charles W. Mills, o contrato racial, assim como o pacto da branquitude, são dispositivos políticos, morais e epistemológicos; eles são concretos; e, economicamente determinantes de quem fica com o quê, o contrato racial e o pacto da branquitude são dispositivos de exploração.
A teoria social construída por Cida Bento, assim como uma gama de autores e autoras pós-coloniais e dos ditos Black Studies, situa o campesinato e o proletariado europeus como beneficiários da colonização. Assim sendo, as condições de exploração do proletariado não são as mesmas em todo o mundo, como querem algumas vertentes marxistas ortodoxas.
Não apenas “A colonização européia das Américas inaugurou um sistema mundial capitalista que ligou raça, terra e divisão do trabalho [...]” (Bento, 2022, p. 36), como também inaugurou uma relação indissociável entre colonialidade e modernidade (Quijano, 2005). Para Bento, a importância de movimentos contestatórios negros se mostra pela afirmação de uma identidade negada. Partindo do conceito de negritude de Aimé Césaire, ela entende os processos de valorização da raça negra por um viés emancipatório. O povo negro sempre lutou contra a escravidão de diversas formas, sejam elas coletivas ou individuais. Das fugas e aquilombamentos, ao aborto e suicídio, os corpos negros foram criando e resignificando as formas de existir frente a um sistema econômico racista e coloniais que negava suas existências simbólicas.
Por fim, se o paradigma proposto por Quijano (2005) de que as elites “da terra” tendiam a se identificar com a elite europeia - diferentemente do movimento de reconhecimento nos Estados Unidos, como proposto por W. E. B. Du Bois, onde a classe trabalhadora branca se identificava mais com a elite branca do que com o proletariado negro - estiver certo, como o proletariado branco brasileiro se identifica em relação a nossa elite e ao proletariado negro?
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!