O trabalho possui como objetivo discutir como se consagrou o padrão de intervenção autocrático-burguês do Estado Brasileiro, a partir da questão regional no Nordeste no período histórico de 1950 a 1980. Possui como método o materialismo histórico-dialético e pautou-se em ampla revisão de literatura realizada no âmbito dos estudos desenvolvidos na pesquisa do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC) financiada pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da Universidade Federal de Pernambuco (PROPESQI/UFPE) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) intitulado “Autocracia Burguesa e Questão Regional: o padrão de intervenção do Estado brasileiro nas expressões da questão social no Nordeste.”
O debate da questão regional brasileira é indissociável da “questão social” no Brasil, visto que a questão social sintetiza o conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, que possuem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana- o trabalho (Iamamoto, 2001). A indissociabilidade da questão social e questão regional também se deve pelo fato da questão regional sofrer refrações da Lei geral de acumulação capitalista que pressupõe produção de desigualdade na sua própria lógica de funcionamento, tanto entre os diferentes países (centrais e periféricos) quanto internamente entre as regiões internas de um país, dado o que Trotsky irá discutir nessas desigualdades espaciais como “a lei do desenvolvimento desigual e combinado”, como destacam Bezerra e Medeiros (2019). Dentre esses, o próprio fato de que a questão regional está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento desigual capitalista que, ao mesmo tempo que demanda o processo de homogeneização para sua reprodução ampliada, ou seja, romper com as diferenças regionais e integrar as regiões no mesmo modo de produção – daí a importância fundamental do Estado –, cria e aprofunda, pelos mesmos meios, as desigualdades regionais.
Nesse sentido, conforme destaca Brettas (2024) a “questão social”, por ser indissociável do modo de produção capitalista, está balizada sinteticamente na articulação de 3 vetores: (1) a interação entre capital e trabalho considerando as relações de exploração-expropriação-opressão que deles se desdobram; (2) os processos de luta e resistência contra as desigualdades ; (3) o Estado.
Assim, o Estado atua sobre as expressões da “questão social” e as tensões existentes entre as classes sociais estabelecendo um determinado padrão de intervenção que pode agravar ou atenuar, mas de nenhum modo superar a “questão social”
Desse modo, em síntese um padrão de intervenção do Estado se constitui em um determinado momento histórico por meio das contradições que lhe são inerentes e da forma como são resolvidas – geralmente produzindo uma combinação entre elementos coercitivos de força e violência com elementos ideológicos que pressupõe a construção de consensos. Afinal, como afirma Netto (2007, p.26) o Estado que se caracteriza como funcional ao capital monopolista é o Estado como “comitê executivo da burguesia”, ou seja, como estrutura que serve para garantir a dominação burguesa, garantindo o conjunto de condições necessárias à acumulação.
No entanto, países de economia dependente (Marini, 2000) e periférica como o Brasil não dispõe das mesmas condições em relação aos países do centro para mediar os conflitos entre as classes sociais. Dessa forma que a relação entre a dominação burguesa e a transformação capitalista é altamente variável, não existe um único modelo básico democrático-burguês de transformação capitalista. Essa característica particular dos países dependentes, e sobretudo do Brasil, de dependência e superexploração, se inscreve na economia e se espraia para os aspectos políticos e sociais.
Nesse contexto, pode-se destacar que quanto mais “se aprofunda a transformação capitalista, mais as nações capitalistas centrais e hegemônicas necessitam de “parceiros sólidos” na periferia dependente” (Fernandes, 2020, p.308). Um tipo de burguesia nacional que seja forte o bastante para controlar as vontades coletivas, a capacidade insurrecional e promover com tranquilidade as transformações necessárias e requeridas pelo capitalismo hegemônico.
Nesse objetivo de manter a estrutura do poder político, a burguesia brasileira ssociada ao capital internacional desenvolve as ações políticas desprovidas de diálogo com os trabalhadores e camadas populares. Pelo contrário, revela-se o caráter e essência autocrática da dominação burguesa além de “sua propensão a salvar-se mediante a aceitação de formas abertas e sistemáticas de ditadura de classe” (Fernandes, 2020, p.309). A burguesia nessa capacidade política consegue articular então uma dominação imperialista externa com um desenvolvimento desigual interno, a manutenção da desigualdade e opressão no Brasil.
Essa desigualdade no desenvolvimento interno se expressa na centralidade dada ao Nordeste no contexto ditatorial (1964-1985) e de como esse período histórico consagrou esse padrão de intervenção do Estado autocrático-burguês no Brasil.
Ianni (2019) destaca como a efervescência política do final das décadas de 1950 e 1960, principalmente no Nordeste Brasileiro, com o desenvolvimento das ligas camponesas, sindicatos rurais e urbanos, grupos e partidos políticos, expressavam o largo avanço democrático dos trabalhadores assalariados do campo e da cidade. Esse processo organizativo foi tratado “como um perigo, uma ameaça, para a continuidade do Estado burguês, cada vez mais posto a serviço do capital monopolista, da grande burguesia estrangeira e nacional, associadas ou não” (Ianni, 2019, p.189-190).
Diante dessas lutas e resistências que antecederam a ditadura civil-militar, Ianni (2019) aponta que os operários e os camponeses passaram a conquistar cada vez mais força política, em função de sua organização, conscientização e atividade. Por dentro e por fora do populismo, nos sindicatos urbanos e rurais, nas ligas camponesas, junto às igrejas, nos partidos, sob diferentes formas, o proletariado e o campesinato protagonizaram um expressivo avanço político, em especial nos anos de 1961 a 1964, período em que se desenvolve e se aprofunda a crise do populismo. Sob diversos aspectos, portanto, o golpe de 1964 e a ditadura militar instaurada a partir dele representaram uma resposta contrarrevolucionária da grande burguesia financeira e monopolista ao crescimento político dos operários e camponeses.
“Em 1961-1964, quando os operários e os camponeses passaram a atuar como classes, com propostas políticas cada vez mais próprias e firmes, a grande burguesia reage com o golpe, a ditadura e a organização de um Estado fascistóide” (Ianni, 2019, p. 306). Essa reação expressa o receio das classes dominantes diante do avanço político do proletariado e do campesinato, que, por meio de sua organização vinha consolidando um projeto político em confronto com os interesses da ordem vigente. Pois, entre 1961 e 1964, criou-se no Brasil uma situação pré-revolucionária, na medida em que se intensificou a politização dos trabalhadores, especialmente operários e camponeses, enquanto ocorria o enfraquecimento do poder burguês (Ianni, 2019).
Essa massa de trabalhadores estava disposta a lutar contra o golpe de Estado, inclusive uma luta armada. Segundo Ianni (2019), diversos grupos sociais, como operários, camponeses, empregados, funcionários, estudantes e outras categorias, se mobilizaram para defender o governo constitucional contra o golpe de Estado, estando dispostos até mesmo a recorrer às armas.
Diante das resistências populares, especialmente no Nordeste, setores organizados da classe trabalhadora sinalizavam disposição para enfrentar o golpe, refletindo o acúmulo político e as articulações em torno da defesa da legalidade. Como aponta Ianni (2019), em Pernambuco, durante o golpe de 1964, Gregório Bezerra relatou ao então governador Miguel Arraes que os trabalhadores rurais demonstravam forte disposição para resistir em defesa da legalidade, embora estivessem desarmados. Frente a esse cenário, Bezerra considerava que a deflagração de um foco de resistência, ainda que localizado e breve, poderia desencadear um movimento mais amplo de oposição ao golpe, com potencial para barrar sua consolidação.
No entanto, o poder estatal não encaminhou a resolução ou mediação desses conflitos como na verdade, segundo Ianni (2019), os problemas foram agravados pelas políticas adotadas. Isto porque as atividades da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), Banco do Nordeste do Brasil (BNB), Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), Grupo Executivo da Racionalização da Agroindústria Açucareira do Nordeste não melhoraram as condições de vida e trabalho dos camponeses e assalariados na agricultura, pecuária, agroindústria.
Na verdade, os governantes recriaram as condições de exploração que prevaleciam no Nordeste antes de 1960, condições agravadas ainda pela repressão política e policial. Assim que o aparelho estatal favoreceu o retorno da superexploração dos trabalhadores nordestinos rurais e urbanos, a partir da aliança direta, clara e brutal com o Estado e assim “mais uma vez, o capital reconquistava o Nordeste de forma ampla” (Ianni, 2019, p.191).
Nesse sentido, orquestrou-se modificações na articulação entre os interesses das burguesias regionais e os interesses da grande burguesia monopolista, que prevalecia no âmbito do Estado, sobretudo no uso do Estado pela burguesia regional: a retórica da política antiga (municipalismo, regionalismo, coronelismo) foi gradualmente substituída pela retórica tecnocrática, do planejamento que vinha da criação da Sudene.
Ianni (2019) destaca em relação a superexploração dos/as trabalhadores/as quanto aos baixos níveis salariais vigentes na agricultura, como pode ser comprovado através das estatísticas da Fundação Getúlio Vargas e pelo Instituto de Economia Agrícola de São Paulo, que indicam que apenas no Estado de São Paulo, a partir do ano de 1973, o salário do trabalhador agrícola se mostra superior ao mínimo. Nos demais Estados, esse salário é sempre inferior, como em 1973, as diferenças maiores foram em Pernambuco e Ceará (ambos estados nordestinos), onde os salários rurais correspondem apenas a 56% e 75% do mínimo, respectivamente.
Um processo tão escandaloso de agravamento das condições de vida e trabalho na região que os próprios governantes e funcionários tiveram que preocupar-se com o problema. Nesse momento, a seca de 1970 serviu de pretexto para que o “Nordeste” passasse a ser tratado (mais uma vez, como em muitas ocasiões em sua história, neste século) como uma “região castigada pela natureza”. Com essa situação, a principal medida adotada do ponto de vista estatal “criados pela seca”, foi propor o Programa de Integração Nacional, PIN (Decreto-Lei n. 1.106, de 16 de junho de 1970), com o objetivo de construir as rodovias Transamazônica, Cuiabá-Santaré, utilizando para isso mão da força de trabalho “excedente” no Nordeste.
Nesse contexto de crescente insatisfação popular, as mobilizações no campo começaram a se intensificar. Ianni (2019) observa que, embora a ditadura tenha reprimido duramente as ligas camponesas, sindicatos, posseiros e demais movimentos rurais, o avanço das lutas sociais no campo forçou o regime a recuar em determinados momentos. Um exemplo significativo foi a expressiva greve ocorrida nos canaviais e usinas de Pernambuco, em outubro de 1979, no qual dezoito mil trabalhadores rurais, sendo 10 mil associados a dois sindicatos da área e 8 mil boias-frias, paralisaram suas atividades nos municípios de São Lourenço da Mata e em Paudalho, na zona canavieira do Estado, numa greve legal que reivindicavam 100% de aumento salarial e outros direitos trabalhistas.
Ao decorrer dos anos e dessa lógica de funcionamento da ditadura e do padrão autocrático burguês do Estado, percebe-se que nos anos 1980, nenhum dos problemas sociais do Nordeste estava nem resolvido nem minorado. Na verdade, os trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos continuavam a trabalhar e viver sob condições extremamente adversas.
Comparadas com as condições prevalecentes em alguns lugares do Sul, ou mesmo com aquelas no próprio Nordeste em 1960-1964, as condições vigentes em 1980 são muito precárias. Ianni (2019) aponta como nesse contexto criam-se e recriam-se as desigualdades regionais no Brasil, por exemplo a situação em 1979: Recife é a capital da pobreza que se mostra nas ruas fervilhando de uma população de 1 milhão e 300 mil habitantes, com 47% da sua faixa ativa ganhando até um salário-mínimo e 81% entre um e três salários--mínimos. Com um terço, mais de 450 mil, apodrecendo nos mocambos.
Na base da Questão Nordeste, como um dos seus aspectos principais, está a questão fundiária. Praticamente toda melhor terra é monopolizada por grandes latifundiários, fazendeiros, usineiros (Ianni, 2019, p.200). Na agricultura do Nordeste, uma das causas principais do subdesenvolvimento do estrato social mais afetado (80% das famílias rurais) está no monopólio da terra, por parte de 11% das famílias. (Ianni, 2019, p. 200).
O que resulta de todo esse processo histórico, político e social de domínio secular da dominação burguesa é um padrão autocrático burguês de transformação capitalista no Brasil e de intervenção do Estado. Um padrão que se articula com o desenvolvimento desigual interno, a questão regional brasileira e se consagra a partir da superexploração de severinos e severinas, adultos, crianças e idosos pela burguesia regional, nacional e estrangeira, amplamente favorecida pelo Estado ditatorial de 1964 a 1985 no Brasil.
Um padrão autocrático completamente contrário aos interesses populares, anseios da população e que mantém seu domínio a partir da centralização do poder. Uma dominação que se irradia nas bases institucionais e possui como elemento central o controle burguês do Estado, configurando-assim um aparelho que seja sua imagem e semelhança, um Estado autocrático-burguês.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!