1 Introdução
O presente trabalho trata-se de uma pesquisa em andamento apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado de Mato Grosso – PPGEdu/UNEMAT e descreve proposta de investigar o cuidar e as relações étnico-raciais na formação acadêmica através da análise dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) dos cursos de Enfermagem da UNEMAT, com a intencionalidade de desvelar como as importantes ações políticas voltadas para a população negra são observadas nestes documentos.
As motivações para o desenvolvimento de uma pesquisa com essa temática advêm da preocupação sobre como a formação acadêmica na área da saúde tem preparado seus egressos para o cuidado da população negra, em que medida os currículos destes cursos têm contribuído para a compreensão dos determinantes sociais que implicam na maior vulnerabilidade da população negra. Uma preocupação pertinente, se pensarmos que o Sistema Único de Saúde – SUS é o principal empregador para a categoria da enfermagem e que não é possível pensar a saúde pública brasileira sem o necessário recorte de raça e os dados que nos informam que a população negra é SUS-dependente, ou seja, que depende exclusivamente desta política para seu cuidado em saúde (MENEZES, 2020, s. p.).
Não é possível ainda, diante desta informação, ignorar como o racismo opera em nossa sociedade. O racismo no Brasil, tal como se apresenta, tem suas raízes na colonização engendrada no país pela coroa portuguesa e ainda hoje estrutura as vidas e as relações produzidas em nossa sociedade, determinando hierarquias baseadas pela cor da pele. As consequências nocivas do racismo na vida da população negra são conhecidas, profundas e sistemáticas. Atingindo-a social, econômica e politicamente, assim como a atinge em sua subjetividade, em sua percepção de si mesma, gerando impactos em sua saúde física e mental.
Por estas razões é importante que a formação de um profissional de saúde esteja em consonância com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) (BRASIL, 2009) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Estudo das Relações Étnico-raciais (DCNERE) (BRASIL, 2004), para que unidades de saúde não se perpetuem como espaços reprodutores de racismo ou coniventes com ele.
A escolha por qual curso investigar vem de uma observação empírica, da minha experiência como assistente social no SUS, atuando na política de saúde mental em um município na região centro-sul de Mato Grosso, ao perceber que a enfermagem exerce um papel de alta relevância dentro das unidades de saúde, sejam elas de baixa, média ou alta complexidade. Que é uma categoria que representa no território o vínculo entre o sistema de saúde local e a comunidade, entre o usuário e a unidade e, invariavelmente, é com quem temos contato mais frequente dentro do dispositivo de saúde.
Este reconhecimento é importante e pode ser de grande potencialidade se aliado a uma formação acadêmica que contemple as políticas para as Relações Étnico-raciais, no compartilhamento da responsabilidade junto às instituições na implementação de estratégias de combate e prevenção ao racismo em seu interior, como preconiza a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Também nos motiva ao empreendimento desta pesquisa, observar a escassez de trabalhos relacionados ao tema, percebida neste primeiro momento em levantamento da literatura. Outro motivo foi perceber que os trabalhos encontrados dedicados a investigar as relações étnico-raciais em sua interface com os Projetos Políticos Pedagógicos e currículo no ensino superior, constataram que a maioria das instituições de ensino superior ou não implementaram os conteúdos exigidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Estudo das Relações Étnico-raciais (Rosa, 2023, p. 110), ou o fizeram de forma rasa, transversal e sem articulação com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (Silva, 2022, p. 118).
Estes dados nos impõe o desafio de ir além de apenas compor um rol de estudos com resultados semelhantes, mas de construirmos juntos alternativas para que a formação acadêmica de uma categoria tão importante no cuidado à saúde da população, seja uma formação que compreenda como o racismo estrutural incide negativamente nos indicadores de saúde da população negra e que seja capacitada para o enfrentamento ao racismo institucional, em particular no SUS (BRASIL, 2009.).
Como objetivos específicos, buscamos identificar como se expressam nos currículos dos cursos de Enfermagem da UNEMAT, as legislações para as Relações Étnico-Raciais e o cuidado da saúde da população negra, discutir a relação entre racismo estrutural, racismo institucional e determinantes sociais de saúde e verificar as concepções dos coordenadores dos cursos de Enfermagem do Núcleo Docente Estruturante da UNEMAT, quanto às temáticas das Relações Étnico-raciais e Saúde da População Negra. Metodologicamente trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa, de caráter exploratório, que contará com levantamento bibliográfico, análise documental dos Projetos Políticos Pedagógicos e entrevistas semiestruturadas.
Historicamente, as políticas afirmativas e para as relações étnico-raciais, no Brasil, foram sendo dimensionadas a partir das lutas e reivindicações dos movimentos sociais, em especial do Movimento Negro desde o período pós- abolição, tendo se intensificado a partir da segunda metade do século XX (Werneck, 2016, p. 536), pressionando o Estado brasileiro a adotar políticas voltadas à população negra, em busca da garantia de direitos fundamentais como o acesso a saúde e educação e de combate ao racismo. Neste cenário e a partir da sua organização, o Movimento Negro conseguiu levar a questão do tema racial à debate na Assembleia Nacional Constituinte e algumas de suas pautas foram parcialmente atendidas pela Constituição Federal de 1988 (Araújo, 2015, p. 91).
A partir da Constituição Federal de 1988 há uma reorganização do Estado brasileiro e a adoção de políticas públicas universalizantes, vimos o nascimento do tripé da Seguridade Social tal como o conhecemos: Saúde, Previdência Social e Assistência Social e da concepção de Saúde e Educação como direito de todos e dever do Estado (BRASIL, 1988). Apesar dos inegáveis avanços obtidos com a CF de 1988 no que diz respeito à cobertura das políticas sociais e da incorporação de pautas do movimento negro, tais políticas ainda eram insuficientes em respostas às demandas da população negra com relação ao acesso a direitos sociais, como aponta Werneck (2016: p. 536):
As reivindicações da população negra e de movimentos sociais ? especialmente o Movimento de Mulheres Negras e do Movimento Negro ? por mais e melhor acesso ao sistema de saúde participaram da esfera pública ao longo dos vários períodos da história das mobilizações negras [...] com forte expressão nos movimentos populares de saúde, chegando a participar dos processos que geraram a Reforma Sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde. No entanto, é possível verificar que essa presença, apesar de ter contribuído para a concepção de um sistema universal de saúde com integralidade, equidade e participação social, não foi suficiente para inserir, no novo Sistema, mecanismos explícitos de superação das barreiras enfrentadas pela população negra no acesso à saúde, particularmente aquelas interpostas pelo racismo.
É neste contexto que o Movimento Negro começa a intensificar as suas ações, com o fim de incorporar à ordem do dia as questões raciais relacionadas ao acesso às políticas públicas, fortemente dificultado pelo racismo institucional. Foi através das reivindicações e reiteradas lutas deste movimento que o Estado brasileiro tem procurado ao longo da República, dar respostas por igualdade de oportunidades, pelo fim da discriminação racial e solucionar as questões sociais impostas pelo racismo através de alguns marcos legais.
Dentre estes marcos legais temos exemplos emblemáticos que resultam do ativismo negro no Brasil, tais como: A Lei 10.639/03, que versa sobre a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio e estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) (BRASIL, 2004); a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), instituída por meio da Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009, criada para combater as desigualdades no SUS e promover a saúde da população negra de forma integral; a Lei nº 12.711/2012, conhecida como a Lei das Cotas Raciais, que significa um marco importante na luta pelo acesso à educação superior pela população negra, representada por milhares de jovens negros que estão a ocupar espaços antes nunca ocupados por um dos seus. Todos os dispositivos aqui elencados são conquistas do Movimento Negro no Brasil e visam reparar as desigualdades e a invisibilidade histórica e cultural sofridas pela população negra, marcadas por relações racializadas desde os tempos coloniais, em uma estrutura social construída e pensada para alijá-la dos espaços de poder e privilégio (Santos, 2022, p.272).
A pesquisa que se encontra em andamento propõe analisar à luz destes marcos legais, em particular, das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Estudo das Relações Étnico-raciais e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, como a educação para as relações étnico-raciais e a atenção à saúde da população negra, têm sido incorporadas ao currículo dos cursos de Enfermagem da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) a partir de seus Projetos Políticos Pedagógicos.
O Projeto Político-Pedagógico instituído pela Lei e Diretrizes e Bases – LDB (Lei Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996) é um dos principais instrumentos norteadores do trabalho pedagógico dentro de uma instituição de ensino, nasce dentro da concepção de gestão democrática e pressupõe uma construção coletiva para a transformação da realidade na qual a instituição e seus atores estão inseridos, deve congregar as diversas visões de mundo em prol de uma prática pedagógica emancipadora (Veiga, 2003, p. 276). Vasconcellos (2014) nos lembra que ele é a sistematização de um planejamento coletivo que se concretiza na ação e está sempre em transformação, ou seja, um instrumento que, como a sociedade, está em constante movimento.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER), estabelecidas a partir da Resolução Nº 1, de 17 de junho 2004 do Conselho Nacional de Educação para nortear e dar subsídios à implementação da Lei 10.639/03, corrobora para o compromisso com uma educação antirracista e de ruptura com o modelo de educação vigente, até então de valorização da narrativa eurocêntrica em detrimento da contribuição dos povos africanos na constituição da nação brasileira. Essa ideia está expressa em três princípios que têm por finalidade conduzir as ações de estabelecimentos de ensino e educadores para a implementação da lei: 1. Consciência Política e Histórica da Diversidade, 2. Fortalecimento de Identidades e de Direitos e 3. Ações Educativas de Combate ao Racismo e a Discriminações. E neste trecho explicitamente:
Em outras palavras, aos estabelecimentos de ensino está sendo atribuída responsabilidade de acabar com o modo falso e reduzido de tratar a contribuição dos africanos escravizados e de seus descendentes para a construção da nação brasileira; de fiscalizar para que, no seu interior, os alunos negros deixem de sofrer os primeiros e continuados atos de racismo de que são vítimas. (BRASIL, 2004: p. 18).
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) é uma política do SUS pensada para a atenção à saúde da população negra, considerando as suas especificidades e os determinantes sociais como fatores de adoecimento. Ela representa o reconhecimento do Ministério da Saúde sobre a necessidade de criar mecanismos para promover a saúde integral da população negra e combater o racismo institucional no SUS (BRASIL, 2017). Conforme Werneck (2016, p. 543), o racismo institucional corresponde a ações e políticas institucionais que operam para produzir ou manter a vulnerabilidade de grupos racializados:
[...] possivelmente é a dimensão mais negligenciada do racismo, desloca-se da dimensão individual e instaura a dimensão estrutural, correspondendo a formas organizativas, políticas, práticas e normas que resultam em tratamentos e resultados desiguais. É também denominado racismo sistêmico e garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados, atuando como alavanca importante da exclusão diferenciada de diferentes sujeitos nesses grupos. [...] Desse ponto de vista, ele atua de forma a induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas – atuando também nas instituições privadas – produzindo e reproduzindo a hierarquia racial. (Werneck, 2016, p. 542)
Dentre as diretrizes da PNSIPN estão: a produção do conhecimento científico e tecnológico em saúde da população negra e o fomento à realização de estudos sobre o racismo e sobre o acesso da população negra aos serviços e ações em saúde, com o fito de produzir resultados que auxiliem na criação de estratégias de combate ao racismo institucional. No entanto, apesar do racismo institucional ainda ser uma realidade, conforme Monteiro (2016: p. 526) verifica em seus estudos, os cursos da área da saúde têm feito pouco para incluir o tema da saúde da população negra na formação dos novos profissionais. A autora argumenta que, além da existência de políticas públicas sobre questões étnico-raciais, é necessário que gestores analisem a importância dessas temáticas.
2 Objetivo Geral
Analisar o Cuidar e as Relações Étnico-raciais na formação acadêmica através da incorporação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Estudo das Relações Étnico-Raciais e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra nos Projetos Políticos Pedagógicos dos cursos de Enfermagem da UNEMAT.
2.1 Objetivos Específicos
? Identificar como se expressam nos currículos dos cursos de Enfermagem da UNEMAT, as legislações para as Relações Étnico-Raciais e o cuidado da saúde da população negra;
? Discutir a relação entre racismo estrutural, racismo institucional e determinantes sociais de saúde;
? Verificar as concepções dos Coordenadores e dos Núcleos Docentes Estruturantes dos cursos de Enfermagem da UNEMAT, referente às temáticas das Relações Étnico-raciais e Saúde da População Negra.
3 Metodologia
Esta é uma pesquisa de natureza qualitativa e de caráter exploratório (Minayo, 1993, p. 21), que investigará os Projetos Políticos Pedagógicos e as Relações Étnico-raciais na formação acadêmica através da implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Estudo das Relações Étnico-raciais (DCNERE) e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) nos cursos de Enfermagem da UNEMAT.
Para o atendimento dos nossos objetivos, será realizado inicialmente um estudo bibliográfico sobre as relações étnico-raciais e seus marcos legais nas políticas de educação e de saúde a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Nosso estudo bibliográfico também pretende incluir produções textuais acerca da construção das relações étnico-raciais no Brasil a partir da relação entre racismo, escravidão e o processo de colonização ocorrido no país. Serão incluídos neste levantamento os conceitos importantes para a compreensão do racismo e seu funcionamento, como racismo estrutural e racismo institucional.
Na sequência será realizada uma cuidadosa análise documental dos Projetos Políticos Pedagógicos e dos currículos dos cursos de graduação em Enfermagem da UNEMAT, seguindo os princípios preconizados Bardin (1977), que buscará identificar a inserção da temática da educação para as relações étnico-raciais nestes documentos, em especial as DCNERE e a PNSIPN.
A pesquisa contará ainda com uma pesquisa de campo que pretende verificar as concepções dos coordenadores dos cursos e do Núcleo Docente Estruturante dos cursos de Enfermagem da UNEMAT, sobre as temáticas das Relações Étnico-raciais e Saúde da População Negra. Para tanto, serão realizadas entrevistas semiestruturadas, com a utilização de um questionário com perguntas abertas e fechadas, para nos orientar na busca do nosso objetivo.
Para efetivarem a sua participação neste estudo as pessoas envolvidas serão apresentadas ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) contendo todas as informações necessárias sobre a pesquisa e que lhes afiança todos os seus direitos; todos os sujeitos envolvidos serão orientados previamente acerca dos objetivos desse estudo, podendo dele desistir a qualquer tempo. Para a participação é imprescindível a autorização prévia do uso dos dados coletados através do TCLE.
Com base na resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, este projeto foi dirigido ao Comitê de Ética em Pesquisa – CEP da Universidade do Estado de Mato Grosso e após análise, obteve parecer favorável para a sua realização.
9 Fundamentação Teórica
Para pensarmos a constituição das políticas para as relações étnico-raciais presentes no Brasil hoje, é preciso olhar para o nosso passado, para a organização do sistema colonial, a racialização de indivíduos não brancos no sistema escravista e as implicações históricas e políticas nas relações sociais no país desde então; conforme nos traz a historiadora Ynaê Lopes dos Santos (2022: p. 16), a história do país é história a do racismo brasileiro. Os marcos legais existentes hoje e com os quais este projeto pretende dialogar, são produtos de uma luta também histórica: a dos Movimentos Negros e que busca a reparação de séculos de injustiças produzidas pelo racismo.
A nossa premissa neste projeto é a de que o racismo no Brasil é estrutural, tem suas raízes no processo de colonização, com o escravismo vinculado ao tráfico transatlântico. O tráfico de pessoas do continente africano para fins de escravização e a colonização levaram ao desenvolvimento de uma hierarquia racial, definindo condições humanas a partir da ideia de supremacia branca, construindo relações racializadas em nosso país. Tomamos neste trabalho o conceito de racismo estrutural trazido por Almeida (2019, p. 33):
[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. [...] O que queremos enfatizar do ponto de vista teórico é que o racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática.
O conceito de racismo estrutural é importante para compreendermos como o racismo opera em nossa sociedade, Almeida alerta em sua obra Racismo Estrutural que o racismo vivenciado pelas pessoas negras no âmbito individual ou institucional, são a materialização de uma estrutura social que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos.
No mesmo sentido, é relevante o conceito de racismo institucional cunhado por Kwame Ture (antes conhecido como Stokely Carmichael) e Charles V. Hamilton e desenvolvido na obra Black Power, a Política de Libertação nos Estados Unidos, lançado em 1967. Ture e Hamilton eram líderes do movimento negro norte-americano, no primeiro capítulo da referida obra, apresentam a diferença entre o racismo individual e o racismo institucional e desenvolvem o conceito de racismo institucional refletindo a situação dos negros nos EUA. Referem que a situação da população negra naquele país não é distinta a de qualquer outra população que fora colonizada, pois assim são tratados em relação à população branca. As decisões políticas são tomadas pelos colonizadores: os brancos. E assim o define:
O racismo é tanto explícito quanto velado. Ele assume duas formas estreitamente relacionadas: indivíduos brancos agindo contra indivíduos negros, e atos da comunidade branca como um todo contra a comunidade negra como um todo. Chamamos isso de racismo individual e de racismo institucional. O primeiro consiste em atos explícitos de indivíduos, que causam a morte, ferimentos ou a destruição violenta de propriedades. Esse tipo pode ser gravado por câmeras de televisão; pode ser observado frequentemente em ações da polícia. O segundo tipo é menos explícito, muito mais sútil, menos identificável em termos de indivíduos específicos cometendo atos. Mas não é menos destrutivo para a vida humana. O segundo tipo tem origem na operação de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade e, portanto, recebe muito menos condenação pública do que o primeiro tipo. [...] é o racismo institucional que mantém as pessoas negras trancadas em cortiços nos guetos, vivendo diariamente como presas de proprietários exploradores, comerciantes, agiotas e agentes imobiliários discriminatórios. (Hamilton; Ture, 2021. p.35)
Esta discussão é necessária para pensar como o racismo é perpetrado no interior das instituições públicas e privadas como forma de manter a hegemonia de um determinado grupo racial no poder (Almeida, 2019, p.26). E é no intuito de combater o racismo estrutural e institucional que alijam a população negra das instâncias de poder e de decisão, que os Movimentos Negros atuam. A luta da população negra por liberdade e direitos iguais é antiga, desde o Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871, que o movimento vem conquistando avanços importantes, no entanto, o racismo ainda é uma realidade que violenta e impede com que a população negra veja efetivados em sua plenitude os direitos conquistados nestes avanços.
A Política Nacional de Saúde Integral População Negra (PNSIPN) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino das Relações Étnico-raciais (DCNERER) são exemplos de políticas importantes surgidas das lutas e reivindicações do movimento negro, são políticas governamentais na área da saúde e da educação e fazem parte de um conjunto de ações afirmativas que tem como objetivos reparar as desigualdades e a invisibilidade à qual a população negra foi submetida, bem como a sua história, identidade e outros aspectos relacionados à sua cultura e ancestralidade, devido à herança da colonização e escravidão.
A PNSIPN aprovada em 10 de novembro de 2006, pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e instituída pela Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009, tem como marcas o reconhecimento do racismo e das desigualdades étnico-raciais como determinantes sociais das condições de saúde da população negra e da responsabilidade do Estado na implementação de ações de combate ao racismo institucional. Traz em suas diretrizes a importância da inclusão de temas relacionados ao racismo e à saúde da população negra na formação e na educação permanente dos profissionais de saúde; a ampliação da participação do Movimento Negro nas instâncias de controle social e o reconhecimento dos saberes e práticas populares preservados pelas religiões de matrizes africanas. Para este projeto alguns objetivos da PNSIPN são de vital importância, tais como: a inclusão do tema sobre racismo nos processos de formação e educação permanente dos profissionais de saúde e no exercício do controle social; da avaliação e monitoramento das mudanças na cultura institucional, através de princípios antirracistas e não discriminatórios, além de fomentar a realização de estudos e pesquisas sobre a saúde da população negra.
Outra legislação importante neste projeto é a Lei 10.639 promulgada em 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei Diretrizes e Bases (LDB) e institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira em todos os níveis de ensino, além de colocar o Dia da Consciência Negra como data prevista no calendário escolar. Considerada um marco na educação brasileira, a Lei 10.639 representa o resultado dos esforços do Movimento Negro e a luta por uma política educacional que considera a participação dos povos negros na formação histórica e cultural de nosso país. Para orientar a sua implementação foi instituída a Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004 que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER).
Em seu primeiro artigo as DCNERER estabelecem que as Instituições de Ensino Superior incluirão nas atividades curriculares dos cursos a Educação das Relações Étnico Raciais, bem como os conteúdos que dizem respeito aos afrodescendentes. A legislação surge no mesmo ano em que é criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR e instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, reconhecidas como ações do governo federal que visavam recolocar a questão racial na agenda nacional e a importância de se adotarem políticas públicas afirmativas de forma democrática, descentralizada e transversal. Com a promulgação da Lei 10.639/03 e a instituição de suas diretrizes, há o reconhecimento de que o Brasil desde a colônia, teve histórica e legalmente, uma postura ativa na discriminação da população negra com relação ao acesso à educação por meio de estratégias legais e políticas para impedir o seu pleno acesso às escolas (BRASIL, 2004), sendo as novas legislações afirmativas uma forma de reparar a disparidade criada por essa injustiça.
O Projeto Político Pedagógico foi concebido para ser um instrumento de gestão democrática que observe a legislação e considere a realidade onde a instituição está inserida. Sua natureza democrática diz respeito a participação na sua construção de toda a comunidade acadêmica, uma construção que não deve ser imposta e deve ser conduzida de forma crítica e reflexiva (Veiga, 1995, p. 18).
O PPP foi instituído pela LDB, que compreende que é fundamental que ele observe a missão da Universidade, que vai além do ensino de graduação, mas que é a forma de explicitar os objetivos de um curso e orientar as estratégias a serem utilizadas. Conforme Veiga (1995) o PPP deve ser um processo permanente de reflexão, que ultrapassa um mero conjunto de planos, que tem finalidades e um direcionamento que o levará a um compromisso definido coletivamente.
4 Conclusão
Considerando o passado colonial e republicano, de apagamento e negação da contribuição da população negra para a construção deste país, bem como, a conivência com as práticas racistas aqui desenvolvidas e suas implicações objetivas na vida das pessoas negras ainda hoje, urge pensar Projetos Pedagógicos de Curso e Currículos que considerem o arcabouço legal que visam a erradicação do racismo da nossa sociedade, tais como a Política Nacional de Saúde Integral População Negra e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, pois estes marcos objetivam a reparação do atraso histórico que o racismo representa.
É necessário lembrar que pensar que uma política de educação igualitária nos coloca diante do desafio de pensar a partir da perspectiva da população a qual a política se destina, neste caso, pensar a população negra respeitando sua história, cultura, vivências e seus determinantes sociais, muitas vezes causa de adoecimento.
É inegável a responsabilidade que a formação acadêmica dos cursos de saúde têm para a materialização da legislação que versa sobre a educação para as relações étnico-raciais e a saúde da população negra e, consequentemente, para a erradicação do racismo nas instituições de saúde, neste sentido, é possível pensar o PPP em suas potencialidades, tendo em vista os cursos de graduação na área da saúde e seus egressos, aqui especificamente os da Enfermagem da UNEMAT, oferecendo uma formação que os capacite a refletir e compreender os impactos do racismo na vida da população negra, preparando-os para o cuidado para com esta população, compreendendo seus determinantes sociais de saúde.
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WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 535-549, set. 2016. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sausoc/a/bJdS7R46GV7PB3wV54qW7vm/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 3 jun. 2024.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!