Rondon na construção da nação: uma crítica pós-colonial[1].
O pós-colonialismo é uma prática teórica que explicita os binarismos inventados pelo ocidentalismo que produziram a modernidade como uma estrutura calcada na subalternidade daquele que é percebido como “outro”. Nesse sentido, a crítica pós-colonial afirma a necessidade de superação das assimetrias persistentemente geradas pelas violências (neo)coloniais. O “pós”, portanto, tem menos uma acepção cronológica de “depois” e mais um sentido afirmativo da necessidade de se “pensar para além” (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2007). Assim, o pós-colonialismo é uma descrição analítica e um projeto político de superação epistemológica do eurocentrismo, isto é, das narrativas e configurações sociais que entendem a modernidade ocidental como única história universal e legítima, ao passo que outras histórias e modos de existência são vistos como particulares, locais ou regionais, e inferiores[2].
O objetivo pós-colonial, portanto, é o de descolonizar o pensamento por meio da desconstrução do paradigma histórico, científico e literário europeu que impõe um modelo de existência que se entende como universal, isto é, como padrão a partir do qual se poderia medir e avaliar a multiplicidade das configurações históricas. O polo dominante da relação colonial constitui-se como o lugar em que se pensa, enquanto o polo dominado é historicamente estruturado como um não-lugar ou, dito de outro modo, consiste em um ponto de vista negado. A perspectiva pós-colonial, desse modo, nos convida a realizar uma reflexão histórica a contrapelo (BENJAMIN, 2012, p. 245), isto é, indagando a cada passo a arbitrariedade daquilo que foi produzido como hegemônico e das possibilidades sempre presentes de ainda se produzir o que não foi e o que não é, já que, afinal de contas, “o real é um caso particular do possível” (BACHELARD, 1974, p. 277); e, sobretudo, indagando o que fica oculto, silenciado ou deturpado pelas narrativas históricas oficiais.
Desse ponto de vista é que se pretende pôr em perspectiva o modo como Rondon tornou-se um símbolo da defesa de um certo indigenismo no interior do “movimento positivista”, essa “casa com diversos compartimentos” (CARVALHO, 1989, p. 189) – indigenismo este que teve como meta elaborar uma política protetiva das etnias indígenas localizadas no território circunscrito pelo que o Estado brasileiro foi conquistando e entendendo constituir sua própria jurisdição e área de exploração, povoamento e colonização. Esse processo colonial de expansão do Estado nacional, assim, é um processo multidimensional que se desdobra em aliança com a estruturação e a expansão do mercado capitalista (mercantilização da natureza, da força de trabalho e dos frutos do trabalho), a colocação da ciência como único conhecimento legítimo e a conquista de porções territoriais e conjuntos populacionais vistos como alheios à institucionalidade estatal e suas normas e regulamentos. O objetivo, então, é situar a trajetória e o pensamento de Rondon no interior da história das tecnologias de governo desenvolvidas pelo Estado brasileiro para lidar com populações e territórios considerados marginais, entendendo-se por marginais aqueles conjuntos de práticas (indissociavelmente materiais e simbólicas) vistos (e, paradoxalmente, coproduzidos) pelo Estado como alheios à institucionalidade estatal e à lógica do mercado capitalista (DAS; POOLE, 2004). Vistos e coproduzidos, portanto, pelos próprios “aparelhos privados de hegemonia” (GRAMSCI, 2000) que conformam o Estado nacional, pois entre estes e aqueles há uma relação interna de recíproca determinação a serviço da manutenção de uma certa ordem legal (hierárquica e horizontal) de poder. Com isso, pretende-se contribuir para o debate acerca dos usos e desusos que são feitos, contemporaneamente, da memória e do legado de Rondon tanto por setores das forças armadas como pela sociedade civil em geral, sobretudo aquele articulado em torno da defesa de um olhar exaltado e romântico acerca dos “pioneiros e desbravadores de Rondônia”, as aspas aqui servindo de estranhamento e desnaturalização de termos tão presentes no imaginário local a enaltecer os processos coloniais que apagam a presença e a história indígenas.
A partir desse enquadramento geral, portanto, é que procuro analisar a trajetória de Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), que, ao longo de intensa atuação política e indigenista por toda sua vida, se tornou “uma das figuras míticas da história do Brasil republicano” (LIMA, 2013, p. 122), um dos “mitos incontestes da história oficial do Brasil republicano” (SOUZA LIMA, 1995, p. 11). E o que explica a força e a fraqueza da sua trajetória é, sem dúvida, o positivismo, essa corrente de pensamento agnóstica e cientificista que, transformando-se numa religiosidade específica (uma religião da Humanidade), forneceu a Rondon e a toda uma geração de militares e intelectuais formados na Escola Militar da Praia Vermelha, a maior instituição de ensino do Exército Imperial, um projeto de país e de nação (republicano e, portanto, antimonarquista) pelo qual lutar. O positivismo, foi, de fato, estruturante para Rondon[3].
O dogma do positivismo é a própria ciência (...) Porque estuda a ordem universal para melhorá-la. Porque aperfeiçoa a ciência, tendo como objetivo o aperfeiçoamento do homem. Porque é, ao mesmo tempo, a religião do amor, a religião da ordem, a religião do progresso. Daí meu “credo”: creio que o mundo e o homem são governados por leis naturais; creio que a ciência, a arte e a indústria hão de transformar a Terra em paraíso, para todos os humanos, sem distinções de raças, crenças, nações; creio nas leis da sociologia, fundada por Augusto Comte, e, por isso, na incorporação do proletariado e das nações consideradas sem civilização à sociedade moderna – para que possam todos fruir dos benefícios da ciência, da arte, da indústria; creio que a missão dos intelectuais é, sobretudo, o preparo das massas humanas desfavorecidas, para que se elevem, para que se possam incorporar à sociedade (RONDON apud VIVEIROS, 1958, p. 610-612).
Rondon, visto aqui como ator, símbolo e autor, formou-se na Escola Militar entre 1884 e 1889, alcançando o diploma de bacharel em Matemática e Ciências Físicas e Naturais e o título de Engenheiro Militar. Foi durante sua formação que, sob a influência decisiva de Benjamin Constant, Rondon converte-se entusiasticamente ao positivismo, o qual, paradoxalmente, era pacifista (antimilitar) e antinacional, embora construindo uma defesa exaltada do nacionalismo e da “pátria brazileira”, do “sentimento patriótico” (TEIXEIRA MENDES, 1881), já que sua utopia de futuro apontava para uma humanidade unificada globalmente; os exércitos seriam desnecessários porque as nações também seriam superadas pelo processo natural de desenvolvimento histórico da Humanidade. A “Humanidade”, guiada pela sua religião, seria homogênea, pacífica e industrial ao ponto de tornar obsoletos os exércitos e as solidariedades nacionais.
Foi a partir dessa filiação devocional ao positivismo que Rondon, como parte de uma geração (LIMA; SÁ, 2008), ajudou a formular uma agenda indigenista para o Brasil republicano centrada nas ideias de pacificação, tutela, assimilação e integração; construir o país e a nação era divulgar a palavra do positivismo e integrar o território e sua população por meio da construção de ampla infraestrutura material (rede de transportes e comunicações capaz de interconectar a totalidade do território nacional) e por uma ação pedagógica e civilizatória que produziria uma nação simbolicamente homogênea. E isso num contexto em que buscava se contrapor tanto a propostas de extermínio, como a defendida por Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista entre 1895 e 1916, quanto a posições que afirmavam a inferioridade racial das populações indígenas, condenando a “fusão racial” ou defendendo uma miscigenação guiada pelo “elemento branco” a conduzir ao paulatino branqueamento intergeracional da população (SKIDMORE, 1976).
Rondônia, a morte e o nada.
Em A casa a rodar: projetos e pioneirismo na Amazônia Ocidental, da antropóloga Manuela Cordeiro, conhecemos as trajetórias migrantes de onze (auto)intitulados “pioneiros” de Rondônia, mais especificamente da região do Vale do Rio Jamari, município de Ariquemes. Nessa cidade, como em várias outras do então Território Federal de Rondônia, cuja criação se dá por decreto em 1943[4], o governo federal, por meio do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), construiu dois projetos de assentamentos dirigidos na década de 1970: o PAD Marechal Dutra e o PAD Burareiro. Aqueles onze interlocutores nos são apresentados, então, como parte dos primeiros migrantes, daí a ideia de “pioneirismo”, que se deslocaram para a área de Rondônia com o intuito de participar das políticas de colonização construídas pelo governo militar como parte do esforço oficial de ceder “terras sem homens” a “homens sem-terra” (MÉDICI, 1970). Ao lado dos PADs, o INCRA também desenvolveu PICs – projetos de incentivo à colonização – ao longo de vários dos municípios de Rondônia, como Ouro Preto do Oeste, Cacoal, Jaru, Ji-Paraná etc., tomando como eixo a BR-364 que, ligando Vilhena (divisa com Mato Grosso) a Porto Velho (divisa com Amazonas), atravessa o território e formou-se acompanhando o traçado da linha telegráfica construída pela célebre “Comissão Rondon”, nome informal e oficioso da Commissão de Linhas Telegraphicas Estrategicas do Matto Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), cujas atividades vão de março de 1907 a janeiro de 1915 e teve como liderança o então coronel Rondon[5].
O nome do município faz referência ao posto telegráfico fundado pela Comissão em 1914 (VIVEIROS, 1958, p. 413), o qual, intitulado “Arikemes” (RONDON, 1915a), nos remete à etnia indígena de mesmo nome, já desaparecida pela violência da expansão colonial e que, nos relatos de Rondon e da comissão por ele chefiada, é descrita como de “índole pacífica” (RONDON, 1915b, p. 219). O município de Ariquemes, junto com outros do então Território Federal de Rondônia, foi fundado oficialmente apenas em 1977[6], mas sua área geográfica foi objeto das políticas colonizadoras do INCRA desde a fundação desse órgão, em 1970.
Esses migrantes que aportaram na região como fruto desses esforços colonizadores da década de 1970 são aqueles (auto)intitulados pioneiros, isto é, os que se entendem (e são vistos) como os “primeiros habitantes”, aqueles que “chegaram quando não havia nada”. No texto de Cordeiro (2015), um dos “pioneiros” entrevistados nos é apresentado como “Seu Beto, o primeiro farmacêutico de Ariquemes” (CORDEIRO, 2015, p. 122); a autora nos relata que, ao ser recebida pelo interlocutor em sua casa, ele fez questão de lhe dizer que contaria a história “do início” e que, quando chegou à região, em 1976, “não tinha nada, era mata, só tinha umas casinhas começando” (ibidem). Como na cidade nascente ainda não havia um cemitério, os primeiros moradores então dedicaram-se à construção do que nos aparece como o primeiro local do município destinado ao enterro dos mortos e ao trabalho de luto dos vivos; sobre o tema, vemos Seu Beto assim se pronunciar:
Quando inauguramos o cemitério, estávamos com uma seringueira velha, cachaceira, ela tinha uns 90 anos. Mas ela ficou aí bebendo cachaça; quando faleceu, o cemitério já estava pronto, no jeito. E nós aqui na nossa cidade tínhamos oito carros, eu tinha uma Kombi. Foram todos os carros no enterro da Marcelina. Estou contando a história da Marcelina porque eu estive no cartório com um escriturário que hoje é aposentado há muito tempo e ele me mostrou o primeiro livro de quando foi criado o distrito de Ariquemes, de 1922. E a Marcelina era casada oficialmente e o marido dela tem o sobrenome de Arikeme. Então, foi com essa Marcelina que nós inauguramos o cemitério [Seu Beto, 25/04/2012] (CORDEIRO, 2015, p. 123).
É muito significativo que o “pioneiro” faça coincidir o início da cidade com o sepultamento de uma Arikeme, no interior de uma marcha fúnebre que é como um rito de passagem. Em seu relato, o momento marcante do “início”, aquele que demarca o novo tempo da vida de uma cidade que se inicia como parte do processo colonizador oficial, é exatamente o da inauguração de um espaço dedicado à morte, um cemitério em que a primeira pessoa enterrada é uma mulher que encerra no seu corpo a decrepitude e o declínio de uma história, de uma sociedade, de uma civilização. Não estamos em face de uma indígena forte e vigorosa, mas de uma “velha bêbada e seringueira” que “ficava aí bebendo cachaça”. É tremendamente expressivo e direto o fato de que nosso interlocutor refira-se à fundação da cidade a partir não só da morte de uma Arikeme, mas de um sepultamento feito em moldes “modernos”; como o costume de alocar os mortos embaixo da terra, em covas especialmente destinadas a esse fim, num local todo ele montado e especializado para a destinação dos corpos já sem vida, é parte do rito especificamente moderno de se lidar com a morte, bem como com o luto dos que permanecem, é como se a violência derradeira contra os Arikeme se desse pelo tratamento “moderno” do corpo morto de Marcelina, num ritual ocidental inteiramente alheio aos modos indígenas de lidar com a finitude, com a morte do corpo[7]. Afinal, expandir o Estado nacional e construir o país na “estrela do oeste”[8] significa, dentre outras coisas, fazer vencer e vigorar os costumes e hábitos da civilização moderna, aí inclusos os ritos fúnebres e as formas simbólicas de se lidar com a morte.
O surgimento da cidade, ela própria um símbolo da expansão para o oeste do Estado nacional no contexto de um regime político autoritário, é marcado, então, pelo funeral do que aparece, no relato, como “a última Arikeme” e para o qual compareceram diversos migrantes “pioneiros” distribuídos em oito carros e uma kombi. Essa espécie de evento fundador da vida da cidade nos aparece numa narrativa que deixa transparecer sem disfarces ou dissimulações a demandar esforços de interpretação que se trata afinal de uma conquista, de uma nova civilização agrícola que vem se impor contra outros modos de existência, que exige sua extinção. É uma vida que se inicia a partir da morte de outras e não há necessidade de encobrimentos ou esforços ideológicos de ocultação.
Esse relato não podia ser mais ilustrativo do quanto o processo de expansão do Estado moderno e do mercado capitalista com vistas à conquista de terras e à construção da nação se fez a partir da destruição de outras nações, sociedades e cosmovisões; o processo de desencantamento do mundo como o de construção da modernidade e de destruição de outros mundos. Foi, afinal, na interação com as nações indígenas já existentes nessa parte do continente que a nação brasileira se fez, se constituiu e se afirmou como tal, interação essa que se processou de diferentes modos ao longo da história, mas, predominantemente, como parte de uma espécie de guerra de conquista. Um dos nossos objetivos aqui é precisamente esse: discutir como a trajetória de Rondon pode ajudar a pensar a respeito das formas de interação que o país estabeleceu com as diversas nações indígenas dessa parte do continente que nos acostumamos a chamar de americano.
Nosso interlocutor, então, parece saber que se trata de uma conquista, de fazer vencer uma forma de vida e um tipo de organização social que supõe o aniquilamento de outros tipos de existência, como os seringueiros e os indígenas, que, no seu relato, aparecem rebaixados na figura de uma mulher “velha e bêbada”, cuja morte está sendo aguardada por um cemitério prontinho, recém-construído, “no jeito”; nosso personagem parece saber, portanto, que se trata de uma conquista e o diz com certo orgulho, com o típico orgulho colonial tão presente nas cidades do Estado de Rondônia (em seus muros, monumentos, placas e outdoors) e no hino dessa parte da federação: “nós, os bandeirantes de Rondônia/nos orgulhamos de tanta beleza/como sentinelas avançadas/somos destemidos pioneiros/que destas paragens do poente/gritam com força: somos brasileiros”[9].
Esse orgulho colonial se ancora, dentre outros fatores, na ideia da ausência, na ideia do nada. É em contraste com o nada que se arma o orgulho do pioneiro na formação de seu lote, na construção da cidade, parte de um projeto de país de que se é um portador relativamente (in)consciente. É em contraste com o nada e com as dificuldades e adversidades logísticas (precariedade ou ausência de uma rede de serviços, de uma malha de infraestrutura urbana etc.) e outras vistas como naturais (como as epidemias de malária) que vai se montando, então, a figura do “desbravador”, do “fundador”, do “pioneiro”, que, vencendo por sua própria força, começa como um “aventureiro”. É porque não tem nada (ou muito pouco) que o sujeito aposta em uma “aventura” em direção ao nada e, vencendo o sofrimento, torna-se um “pioneiro”[10].
Assim, nas narrativas acerca do pioneirismo, a ideia do nada aparece associada a três sentidos interconectados: o Estado (representado quase que exclusivamente pelo INCRA) não fornecia nada aos migrantes (em termos de infraestrutura material para o trabalho de abertura do lote e de cultivo da terra concedida), as famílias que se dirigiam à Rondônia em busca de uma vida melhor eram pobres, sem-terra e não tinha nada (de modo que, indo em direção ao Território Federal, não deixaram nada para trás) e, por fim, não havia nada em Rondônia em termos de infraestrutura urbana e de serviços, assim como não havia gente, não havia ninguém.
Rondon no “espírito” do pioneirismo.
Em busca de uma vida melhor, de uma “expectativa de vida” (no dizer de Seu José), aquelas famílias que saíram de seus estados de origem em direção à Rondônia foram as portadoras de um processo histórico mais amplo, de um esforço colonial do Estado nacional que teve por efeito de longo prazo uma devastação que, em alguma medida, não estava antecipada pelos agentes históricos concretos; esse processo histórico mais amplo comporta, ademais, como uma de suas dimensões, essa ideologia ou esse regime discursivo a respeito do pioneirismo.
Esse paradoxo das consequências, presente de modo clássico na análise weberiana acerca do papel do puritano na construção de um “espírito” (um ethos, uma ética) que foi a energia expansiva do sistema capitalista, e que afinal de contas atravessa de algum modo a trajetória de vida de todos nós, aparece de modo singular nas histórias dos pioneiros, que, no mais das vezes, estavam relativamente inconscientes a respeito do mundo que estavam ajudando a construir e dos usos e desusos narrativos centrados em suas histórias de trabalho e deslocamento. A consciência a respeito dessa inconsciência, que é um tipo de lucidez, aparece, por exemplo, na fala de um dos interlocutores de A casa a rodar, quando assim se pronuncia:
eu acho que na época a gente não entendia, fomos trazidos, empurrados para aqui. Na época, não participávamos de nenhuma organização, a gente nem sabia muito bem porque estava vindo para cá. A gente queria construir uma coisa – uma terra pra trabalhar (...) A gente não veio a fim de enricar, a gente veio a fim de procurar uma sobrevivência, aí a gente conseguiu viver melhor [Seu Leonardo] (CORDEIRO, 2015, p. 146).
Esse regime discursivo do pioneirismo encontra no imaginário local uma espécie de ancestral, de pioneiro dos pioneiros que é Rondon. Em diversas produções e relatos a figura de Rondon aparece associada a esse esforço colonizador de um desbravador que abre o sertão, leva a civilização e constrói a nação; que abre o caminho que outros irão aperfeiçoar e trilhar. Seu José[11], por exemplo, em face da pergunta sobre o personagem (Rondon) que inspira o nome do Estado (Rondônia), afirma:
Tal de marechal Rondon... esse marechal Rondon era, eu acho, era uma pessoa que descobriu a Amazônia aqui, essa Rondônia nossa, essa bacia amazônica, descobriu e penso eu que esse início da abertura disso aqui, foi um plano desse tal de marechal Cândido Rondon. O início da abertura de colonizar isso aqui (...) Mas, eu não tenho detalhe a respeito disso não. Eu penso que isso aí é esse cara que teve a iniciativa de começar pra poder colocar essas áreas que era mata naquele tempo, em dividir ela, cortar, botar empresa pra poder cortar, pra poder colonizar, pra população entrar. Que foi o que o INCRA fez. Eu penso que é iniciativa dele. Isso aí com certeza é um antigo! Poderia até ser um seringueiro velho, poderia até ser um... dizer que é um indígena não é, porque os indígenas naquela época não... hoje é diferente, naquele tempo era mais atrasado, hoje tem indígena que é até médico.
Na fala de Seu José, Rondon aparece como um desbravador (descobriu a Amazônia e deu início à abertura da colonização) associado à figura do “seringueiro” e do “indígena”, mas destes se destacando justamente pelo caráter pioneiro (botar empresa pra cortar áreas que era mata naquele tempo pra população entrar). Noutros momentos, o “seringueiro” é visto como o primeiro pioneiro, como aquele que começou uma obra que o migrante produtor agrícola (de anos depois) iria continuar à sua maneira.
Seu Rubens: (...) pioneiro eu acho que é quem mora muito tempo naquele lugar, os mais antigo, pelo menos nessa região aqui de Ariquemes um dos mais antigos sou eu.
Entrevistador: E o que mais é o pioneiro?
Seu Rubens: Então... é o pessoal que veio pra cá no tempo da guerra, mil novecentos e quarenta e cinco, quarenta e dois, eles vinham pra cá ou iam pra guerra, eles escolhiam um dos dois. Esse velho que eu tava te falando que morreu em cima da casa, ele veio pra cá pra não ir pra guerra, veio como soldado da borracha. Então, pra mim esses são os pioneiros. Não vinha gente pra cá, depois deles é que veio gente pra cá, veio muita gente pra cá pro seringal, né? (...) O Rondon fez uma boa coisa também, né? Porque tirou essa linha telegráfica de Cuiabá pra Porto Velho, era a comunicação que tinha era só aquela, né? Era bom que ele tinha comunicação[12].
(...) Cada seringueiro conhece sua região, como conhecemos a cidade onde moramos. Ele conhece todas as montanhas, serras, rios e igarapés, sabe onde está cada seringueira. Sabe onde achar uma paca, um tatu, um veado ou uma onça. Não subestimando os méritos do Mal. Rondon, estes são os verdadeiros desbravadores de toda a Amazônia. Homens que renunciaram a tudo que a civilização nos oferece para viver uma vida de fome e de miséria, por um ideal de independência e compensação mínima [Diário de seu Pedrinho, 20/06/1976, grifos da autora) [CORDEIRO, 2015, p. 181][13].
Em todo caso, Rondon é um ponto de inflexão, é um marco na história e no imaginário dessa figura social do pioneiro, desse discurso acerca do pioneirismo. Dentre uma diversidade de obras, monumentos e escritos dedicados à construção dessa mitologia em torno de Rondon, destaca-se, por exemplo, Rondon: o civilizador da última fronteira, do jornalista Edilberto Coutinho, em que o militar é apresentado como alguém cujo “tema preferido” é a
selva, onde viveu meio século de internamento voluntário, conquistando para a nacionalidade homens, terras e rios, onde percorreu 26 mil quilômetros de terras desconhecidas, em 40 mil quilômetros de marcha (total da jornada), e construiu mais de seis mil quilômetros de linhas telegráficas. A obra desse conquistador pacífico, respeitado por sua autoridade, pioneiro das populações subdesenvolvidas, defensor da lei na própria selva, íntegro, probo, incorruptível, foi antes de tudo a contribuição de um verdadeiro e grande patriota (COUTINHO, 1975, p. 06).
O objetivo, aqui, é investigar a trajetória de Rondon com vistas a avaliar criticamente as disputas narrativas em torno de seu legado. Não se trata de fazer aparecer “o homem por detrás do mito” ou algo assemelhado, mas avaliar, à luz de seu próprio tempo e dos aportes teóricos pós-coloniais, o pensamento e a atuação política e indigenista de Rondon, questionando o uso hegemônico (centrado na figura do “pioneiro”) de seu legado e apontando para outras possíveis reapropriações de suas escolhas e ações.
[1] Trata-se de texto em construção, ainda muito inicial, resultado de pesquisa de pós-doutorado em andamento no PGCS/UFES, sob a supervisão da professora Adelia Miglievich-Ribeiro.
[2] Essa abordagem é necessária para se pensar para além do atraso e da singularidade no âmbito do pensamento social e político brasileiro, pois uma postura capturada pela imagem idealizada da experiência europeia de modernidade tende a conduzir à posição (consciente ou inconsciente) segundo a qual “o centro, ao pensar sobre si, teorizaria sobre o mundo [e] a periferia só seria habilitada a pensar sua própria particularidade” (RIBEIRO; DUTRA; MARTINS, 2024, p. 185).
[3] Nas palavras de Diacon (2006, p. 96): “O positivismo foi tudo para Rondon. Moldou sua visão de mundo. Forneceu o esquema para o desenvolvimento nacional que ele seguiu ao planejar e construir a linha telegráfica. Determinou suas ideias sobre as relações entre índios e brancos no Brasil. O positivismo deu a Rondon a força espiritual para levar a cabo suas atividades na Amazônia. Consolou-o durante os longos meses de separação da família e encorajou-o quando as provações e os reveses das campanhas do telégrafo lhe minaram a confiança. Em suma, Rondon construiu os êxitos de sua carreira sobre os alicerces do positivismo. Mas, o positivismo de Rondon também foi a principal fonte de problemas que ele encontrou durantes suas campanhas de construção do telégrafo (...) Portanto, justamente o que deu significado à vida de Rondon e lhe fortaleceu a determinação e o caráter também limitou o impacto de seu trabalho e sua influência no Brasil”.
[4] O decreto-lei nº 5.812, de 13 de setembro de 1943, cria, no auge do Estado Novo e da política varguista conhecida como “Marcha para o Oeste”, além do Território Federal do Guaporé, os territórios federais de Iguassu, Ponta Porã, Amapá e Rio Branco (BRASIL, 1943). Posteriormente, dois anos antes da morte de Rondon, a lei nº 2.731, de 17 de fevereiro de 1956, “muda a denominação do Território Federal do Guaporé para Território Federal de Rondônia” (BRASIL, 1956). Por fim, a lei complementar nº 41, de 22 de dezembro de 1981, cria o Estado de Rondônia (BRASIL, 1981). A sugestão, no entanto, da conformação dessa parte do noroeste do país como uma área específica da federação vem de Rondonia, de Roquette Pinto (1917); nessa obra clássica da história da antropologia brasileira (CASTRO FARIA, 1959), o autor propõe a criação de uma nova província antropogeográfica (ROQUETTE-PINTO, 1917, p. 19) por ele intitulada, como forma de homenagem a Rondon, de Rondonia, abarcando uma extensa área geográfica entre Cuiabá e o município do então Santo Antônio do Rio Madeira, localizado onde hoje se encontra a cidade de Porto Velho.
[5] Um relato pessoal a respeito da construção da BR-364 pode ser encontrado em O outro braço da cruz, de Paulo Nunes Leal, ex-governador do então Território Federal de Rondônia pelo curto período de setembro de 1954 a abril de 1955; trata-se de uma peça de (auto)propaganda política e mais um exemplar da vasta bibliografia do que podemos chamar de uma discursividade – ou um regime discursivo – de exaltação do pioneirismo, espécie de narrativa oficial e popular acerca do Estado de Rondônia (e, por conseguinte, da história do país) centrada na louvação do “heroísmo” dos “pioneiros”, dos “homens” portadores de uma certa missão civilizatória, sendo, enquanto tal, bastante elucidativa a respeito do imaginário local.
[6] Ariquemes, Ji-Paraná, Cacoal, Pimenta Bueno e Vilhena foram oficialmente criados pela lei nº 6.448, de 11 de outubro de 1977 (BRASIL, 1977).
[7] A história do popularmente conhecido como “índio do buraco”, passada ao sul do Estado de Rondônia, nos oferece um contraponto esclarecedor. Tanaru, o “índio do buraco”, cavava um buraco na terra para se esconder da morte, para se proteger contra as tentativas de homicídio de que era alvo, ao passo que, percebendo a morte chegar, preparou-se e se deitou sobre uma rede. Com o cerco de guerra cada vez mais próximo, muito distinto do “cerco de paz” preconizado por Rondon, Tanaru recusava-se ao contato com o Brasil e levou essa decisão até o fim, escondendo-se sob a terra para permanecer vivo e escolhendo morrer deitado em uma rede, enfeitado com penas, numa casinha de palha no meio da floresta, sobre a terra. Mais sobre o caso em Vida depois do fim (RADIONOVELO, 2023).
[8] A referência aqui é à capa da Revista Veja de 06/01/1982, em que se vê, à frente da imagem de trabalhadores agrícolas sorridentes, os dizeres “Rondônia: uma nova estrela no oeste” (VEJA, nº 696, 1982); trecho da matéria assinada pelo jornalista Hélio Teixeira, intitulada “As promessas do Oeste”, diz que “a elevação de Rondônia a Estado abre uma nova rota de esperança para os migrantes e para a consolidação do desenvolvimento brasileiro” (idem, p. 52). A ideia de el dourado e de terra prometida é igualmente muito presente nas diversas manifestações, oficiais e oficiosas, inscritas em textos e monumentos a respeito da história do Estado de Rondônia.
[10] Seu José, um dos que pude entrevistar como parte da pesquisa, chegou em Rondônia também em 1976 e refere-se à sua decisão de mudar-se do Paraná como uma busca por “expectativa de vida”. Em diversos momentos menciona a “superação da dificuldade”, de modo que o sofrimento não tenha sido em vão, como etapa formadora daquele que se torna um “pioneiro” – por exemplo: “a vinda pra Rondônia foi uma aventura. Naquela época, vinha gente de Minas, Paraná, São Paulo, Bahia, tudo aventurando (...) Por eu ser pioneiro daqui, eu me considero hoje um rondoniense (...) É aquela história, pra gente que nunca teve nada, dependendo dos braços, trabalhando... A gente ser dono da gente mesmo, a gente ser dono do nariz da gente é uma riqueza. (...) Porque quando você, por exemplo, luta, luta, luta e não consegue nada, aí seu sofrimento foi em vão. Agora, que nem eu entrei, por exemplo, sofri, sofri, sofri! Mas, venci! E hoje consegui alguma coisa, a diferença é essa aí”.
[11] Como forma de preservação da identidade dos interlocutores e respeito pela generosidade em relatar suas histórias de vida, todos os nomes aqui utilizados são fictícios.
[12] Seu Rubens, um dos que também pude entrevistar, nasceu em 12 de janeiro de 1934, tendo chegado na região onde hoje se encontra o Estado de Rondônia em 1952, com 18 anos, época em que, segundo afirma, ainda não havia o Território Federal de Rondônia, nem o do Guaporé, do qual nunca ouviu falar, mas apenas o Estado do Mato Grosso. Dirigiu-se para lá porque se dizia, na sua terra, no Ceará, que “com a borracha ganhava dinheiro à vontade”.
[13] O trecho é de “O diário de um pioneiro”, quarto capítulo de A casa a rodar; lá, a autora analisa o diário de um de seus interlocutores, Seu Pedrinho, que chegou à região de Ariquemes também em 1976.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!