Autoritarismo, masculinidade e a perpetuação da violência doméstica no Brasil.

  • Autor
  • Ana Cecília Gonçalves Santos
  • Resumo
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    O objetivo deste resumo é fazer uma análise exploratória qualitativa para analisar como as masculinidades desenvolvidas na sociedade Brasileira contribuem para a manutenção e ascensão dos crimes de violência doméstica, especialmente no Espírito Santo, mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha que é considerada um marco global significativo. Sendo assim, argumentamos que a sociedade brasileira desenvolvida no contexto colonial, hierárquico e verticalizado, produz relações de poder violentas e uma cultura de dominação masculina. Desse modo, os dispositivos da lei Maria da Penha, apesar de ter o condão de propiciar apoio às vítimas, não têm produzido efeito dissuasório no cometimento desse tipo de crime.

    A partir da análise dos dados divulgados pela Secretaria de Estado de Segurança Pública do Espírito Santo – SESP no Painel de Monitoramento da Violência Doméstica nos anos de 2018 a 2023 e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024) e dos referenciais teóricos de Marilena Chauí sobre as características autoritária, hierárquica e violenta da sociedade brasileira e com aporte no conceito de masculinidades de Connell (2013), combinada com análises da mesma temática a partir de autores brasileiros.

    Em 2024 a Lei Maria da Penha completou 18 anos e, embora seja considerada uma das melhores legislações do mundo que intenta combater a violência doméstica contra meninas e mulheres, ainda assim observamos que os crimes contra a dignidade física, corporal, psicológica ou patrimonial contra elas não vem se arrefecendo, o que nos leva a questionar os motivos deste crescente.

    É certo que o mecanismo dissuasório das penas criminais é complexo e nele incidem diversas variáveis que interagem entre si de forma não necessariamente uniforme. Como explicou Túlio Kahn, a quantidade de criminosos varia de acordo com os ciclos da economia, com as taxas de desemprego, de urbanização, tendências demográficas, níveis de desigualdade social e outras variáveis (Kahn, 2000). Entretanto, se acreditamos que penalizar criminalmente determinadas condutas, principalmente restringindo a liberdade, ocorre para estabelecer um efeito dissuasório e intimidar os cidadãos de perpetrarem crimes, nos questionamos mais uma vez por que esta dissuasão não está ocorrendo no contexto das violências domésticas.

    O questionamento se revela mais pertinente quando observamos que os números de mortes violentas intencionais (MVI)[1] no cenário nacional apresentaram queda: tiveram uma redução de 3,4% em suas taxas por 100 mil habitantes em relação ao ano anterior. Observando um período mais longo, entre 2017 – ano em que o Brasil atingiu o pico de MVI, com 64.079 ocorrências policiais registradas – e 2023 – com 46.328 casos –, percebemos que as estatísticas de mortes violentas revelam um movimento bastante acentuado de queda, iniciado em 2018, da ordem de -27,7% (FBSP, 2024).

    Embora a variação observada no Estado do Espírito Santo (ES) tenha sido menor que a média nacional – a diferença entre os anos de 2022 e 2023 foi de -2,8%, ou seja, ainda assim observa-se o decréscimo nas mortes violentas em geral (FBSP, 2024).

    Por outro lado, no ES, os crimes de violência doméstica atingiram o maior patamar observado no período 2018-2023, somando um total de 22.135 casos. Em 2023, observou-se um aumento de 1.641 no número de casos absolutos em relação ao ano de 2022: uma elevação de 8% no número de registros desse tipo de violência. No caso da variação geral do período (2018-2023) houve um aumento de 3.612 registros, representando um aumento de 19,5% no número de casos (FBSP, 2024).

    Os crimes da categoria “Ameaça Contra Mulher” ocupam a segunda posição da contagem, representando 21% das ocorrências. Já “Descumprimento de Medida Protetiva” e “Lesão Corporal Leve” representam 7% dos casos cada um, seguidos por “Lesão Corporal Contra Mulher” com 4%. Todos os outros crimes enquadrados pela Lei Maria da Penha somados representam 8% dos casos (SESP-ES, 2024).

    Segundo o Painel de Monitoramento da Violência Contra a Mulher da Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo, em 2022 houve o registro de 69 tentativas de feminicídios. Em 2023, o registro desse crime subiu para 78 e em 2024 foram 85 ocorrências (SESP-ES, 2024).

    O mesmo acréscimo pode ser verificado nas ocorrências de lesão corporal. Chama atenção, contudo, o permanente aumento daquelas lesões consideradas graves[2]. No ano de 2022, foram registrados 111 casos. Em 2023, observou-se uma queda nos registros: 105 casos. Em 2024, porém, os números voltaram a subir e, ao final do ano, 122 ocorrências deste crime foram registradas (SESP-ES, 2024). Entre 2022 e 2023, os registros do crime de ameaça contra mulheres, por sua vez, passou de 12.485 ocorrências para 13.882, aumento de 11% entre o período.

    Um dado que entendemos retratar muito bem a falha na dissuasão criminal é o igualmente crescente número de registro de ocorrências do crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgências. Criado em 2018, o crime passou a constar na Lei Maria da Penha e passou a ser considerado criminoso o ato de descumprir medidas protetivas de urgência. Portanto, o ofensor que desrespeita medida a ele imposta, comete o crime tipificado no artigo 24-A da Lei Maria da Penha. Embora o aumento nos registros também possa ser atribuído ao conhecimento da tipificação penal, o fato do ofensor não respeitar sequer a medida protetiva, sob pena de incorrer em outra responsabilização criminal, também é um fato que nos leva a reflexão.

    Em 2011, o Espírito Santo lançou o Programa Estado Presente com o escopo de reduzir os índices de homicídios em áreas com maior vulnerabilidade social. De acordo com Fajardo, Barreto e Figueiredo (2014), o objetivo principal do programa era priorizar a implementação de ações e projetos voltados ao enfrentamento da violência letal e à prevenção primária, a partir da ampliação do acesso à saúde, educação, cultura, emprego, renda e cidadania das regiões caracterizadas por altos índices de vulnerabilidade social (IJSN, 2019). Entretanto, em 2023, a taxa de homicídios de mulheres por 100 mil habitantes no Espírito Santo foi de 4,5 – número acima da média nacional de 3,8 (IJSN, 2024). Embora o Programa pareça ser efetivo no que se refere às mortes violentas em geral, o mesmo não ocorre com relação à violência doméstica contra mulheres

    Neste trabalho, entendemos que esse paradoxo entre a política de proteção e o agravamento da violência pode ser compreendido a partir da análise crítica das estruturas sociais que sustentam as práticas violentas e da efetividade limitada das políticas públicas vigentes.

    Marilena Chauí(2019), ao discutir que a sociedade brasileira se estrutura de forma, oligárquica, vertical, hierárquica e patriarcal e, por isso mesmo, violenta, herança de anos de colonização e escravização, aponta que a perpetuação de estruturas e relações de poder – que inclui a violência – são internalizadas como formas de ordem e controle social. No mesmo sentido assentiu Lélia Gonzalez (2020) ao destacar que as técnicas jurídicas e administrativas das metrópoles Ibéricas – Portugal e Espanha –  constituíram as sociedades latino-americanas de forma hierárquica e racialmente estratificadas.

    Já no início dos anos 1980, Chauí apresentava essa leitura sociológica e ainda ressaltava que o Brasil construiu um mito poderoso da “não violência” que ocultou muitos acontecimentos. Explicando-o a partir da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, Chauí (2017) dispõe que a “história feita sem sangue” opera como alicerce para construção mítica da sociedade brasileira como a boa sociedade, una, indivisa, pacífica e ordeira, erguendo-se, assim, “a imagem de um povo generoso, alegre, sensual, solidário, que desconhece o racismo, o machismo, a homofobia, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas”.

    Entretanto, como bom mito que é, o mito da “não violência” não encontra fundamento na realidade, que se desenvolve de forma totalmente diversa. O que Chauí(2017) chama de “micropoderes despóticos” se enveredam por todos os âmbitos da sociedade, introduzindo nela a violência, desde a família, passando pelo comportamento social nas ruas, até na violência policial, fazendo com que o “outro” não seja reconhecido como sujeito. É esse alicerce de autoritarismo social e subjugação que assenta a sociedade brasileira e faz com que ela opere “com o encolhimento do espaço público (da lei e dos direitos) e o alargamento do espaço privado (da vontade arbitrária)”. A estrutura social que permite a violência ganha força com a sua não percepção como propriamente violenta ou como estrutural e reflexiva.

    A autora também nos ensina que é preciso expandir o conceito de violência para além da dimensão física. É preciso compreendê-la como psíquica e simbólica, como algo que vai além da criminalidade e delinquência: é uma forma de relação social, e que na sociedade brasileira está fundamentada em uma estrutura autoritária, mas escondida e entremeada pelo mito da não violência (Chauí, 2017). É preciso ressaltar que não se trata de considerar os brasileiros como individualmente violentos, mas de esclarecer como as estruturas históricas produzem uma vida social em que o espaço público é minguado, transferindo ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo, no cotidiano, relações de poder.

    Essa chave de leitura permanece extremamente atual para analisar como a violência doméstica se reproduz e se sustenta na nossa sociedade hierarquizada e patriarcal. No trabalho “Participando do Debate sobre Mulher e Violência”, Chauí (1985) compreende que a violência doméstica advém e é resultado de uma ideologia de dominação feita por homens, e que se cria e se repete por homens e mulheres (Santos e Izumino, 2005).

    Chauí, definindo a violência como “uma realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais” (1985), visualiza-a partir de dois focos: de um lado, é um movimento que transforma a diferença em desigualdade, e esta, por sua vez, gera hierarquia. À medida em que a violência submete uma vontade a outra, numa assimetria hierárquica que visa a dominação, também é gerada a alienação, pois a violência perfeita é aquela em que a vontade e ação alheia é interiorizada na parte dominada, de modo a fazer que a perda da autonomia não seja percebida ou mesmo reconhecida, “em outros termos, a violência perfeita é aquela que resulta em alienação” (Chauí, 1985). Essa cultura da dominação, segundo a autora, se expressa no espaço público e privado, reforçando uma ideologia patriarcal que sustenta a autoridade masculina como racional, ordenadora e incontestável.

    É neste terreno de autoritarismo e verticalidade na qual o poder e dominação tornam-se meios legítimos de organização das relações sociais, que verificamos que a dominação masculina não se limita, portanto, a uma hierarquia de gênero, mas envolve também a construção simbólica do “ser homem” como aquele que domina, controla e impõe sua vontade, inclusive pelo uso da força. Neste ponto se inscrevem os estudos de R. W. Connell (1995), ao propor que as masculinidades são formas historicamente produzidas de encarnar e exercer poder, sendo a masculinidade hegemônica aquela que goza de legitimidade social para dominar, controlar e excluir.

    Deste modo, a partir do conceito de Masculinidade Hegemônica formulado por R.W. Connell e James W. Messerschmidt (2013), compreendemos a masculinidade hegemônica como uma construção histórica e relacional, situada nas práticas sociais e nas estruturas de poder, e que configura práticas que legitimam a posição dominante dos homens na sociedade e justificam a subordinação das mulheres e de outras formas de masculinidade. Esse conceito não se refere a uma masculinidade única ou universal, mas sim a um padrão culturalmente exaltado e qual a masculinidade hegemônica ocupa o topo. Segundo Bermudez (2013), inspirada na teoria da Dominação masculina de Pierre Bourdieu, Connell estabelece a existência de uma configuração de práticas de gênero, a masculinidade hegemônica, que sustenta a posição dominante dos homens na sociedade, e a subordinação das mulheres, na medida em que “entende gênero como uma interrelação entre estrutura e prática, observando que os indivíduos constroem o conjunto de relações sociais” (VERAS, 2018). Essa abordagem permite compreender como os papéis masculinos são socialmente produzidos e sustentados em dinâmicas institucionais, culturais e simbólicas.

    Entretanto, masculinidade não é um conceito fixo pois reconhece a existência de múltiplas masculinidades que interagem em diferentes contextos sociais e culturais. A partir disso, Connell e Messerschmidt (2013) ressaltam a necessidade de que sejam considerados a agência das mulheres, a geografia das masculinidades e a incorporação de práticas de poder e privilégio. Isso porque a masculinidade hegemônica é definida como um modelo central, o que implica considerar outros estilos como inadequados ou inferiores (CECCHETTO, 2004). Essa situação gera a divisão entre as masculinidades hegemônicas e as subalternizadas. Connell “utiliza o conceito de masculinidades, no plural, para se referir aos vários papéis sociais desempenhados pelos homens, uns aceitos e legitimados e outros que não se enquadram nem no masculino nem no feminino socialmente aceito” (URRA, 2014). Os próprios autores são categóricos ao afirmar que “masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013).

    Almeida (1996) define a masculinidade hegemônica como “um modelo cultural ideal que, não sendo atingível – na prática e de forma consistente e inalterada – por nenhum homem, exerce sobre todos os homens e sobre as mulheres um efeito controlador”. Ademais, gera privilégio aos homens. Ele conclui, diante disso, “que a masculinidade não é a mera formulação cultural de um dado natural; e que a sua definição, aquisição e manutenção constitui um processo social frágil, vigiado, auto-vigiado e disputado” (ALMEIDA, 1996).

    No mesmo sentido, ensina Rita Santos que “este tipo ideal de masculinidade é uma construção cultural hegemônica que, apesar de não equivaler às atitudes da maioria dos homens, sustém e legitima o sistema patriarcal na vida social e política”. A autora entende que essa versão idealizada da masculinidade possui “ingredientes” na atual cultura ocidental, como a “coragem, a agressividade, a heterossexualidade, a homofobia, a racionalidade e a subordinação das mulheres” e, em relação a ela, imagens de feminilidade e outras masculinidades, tidas como inferiores (homossexualidade, transexualidade), são marginalizadas e subordinadas (SANTOS, 2012).

     Talvez a força física e virilidade sejam os papéis de gênero mais lembrados quando se pensa a masculinidade. E não estariam esses papéis, também, a fomentar a agressividade normalizada na performance de gênero de meninos e homens?

    JJ. Bola, educador, poeta e escritor congolês radicado em Londres, rememora que a violência e agressividade estão presentes até mesmo na socialização secundária, nas escolas, desde as brincadeiras de lutas, até na forma de se manter a hierarquia, de modo a testar quem é o mais forte do grupo, realizando uma ordenação social daqueles meninos. As características físicas são valorizadas em detrimento à gentileza e empatia, essas associadas, por sua vez, às meninas. As demonstrações públicas de fragilidade são desestimuladas, ao contrário das demonstrações de força e virilidade – “a agressividade masculina é também uma performance” (BOLA, 2020), e uma performance simbolicamente hegemônica.

    Meninos e homens são estimulados a pensar e agir no mundo de forma a deixar incontestável o lugar de líder e provedor, próprio do patriarcado. Lugares que são conquistados e mantidos através da demonstração de um perfil viril, forte, agressivo, mesmo que contrarie uma lógica particular do sujeito ou que o resultado desta imposição seja violenta para qualquer gênero, inclusive para os próprios homens. Como é ressaltado por JJ Bola “assim, percebemos que muitas coisas que nos dizem sobre virilidade e masculinidade são, na verdade, perigosas para nós, enquanto homens e meninos, e para as pessoas que nos são próximas, incluindo as mulheres”. (BOLA, 2020).

    Por essa razão, embora a hegemonia da masculinidade não signifique singularidade, é preciso suscitar que alguns padrões performativos continuam presentes como expectativa social do que se espera de um homem. No contexto brasileiro, as masculinidades hegemônicas e subalternas se constituem a partir de uma lógica interseccional que articula gênero, raça e classe social, estruturando relações de poder que impactam tanto a produção da violência quanto sua vivência.

    A masculinidade hegemônica — frequentemente associada ao jovem, heterossexual, cisgênero, branco, forte, rico e viril, com acesso a recursos simbólicos e materiais — é construída como modelo normativo de virilidade, força e controle (Ramirez, 2019). Em contrapartida, as masculinidades subalternas, como as de homens negros, pobres, periféricos e LGBTQIA+, são desvalorizadas e frequentemente criminalizadas, o que os torna alvo da violência institucional e do racismo estrutural.

    Trindade e Muniz (2024) afirmam que os processos históricos e sociais associaram a masculinidade negra à estereótipos prejudiciais e a uma representação negativa, o que impacta diretamente nas dinâmicas de poder. Portanto, “a interseccionalidade entre raça e gênero também desempenha um papel fundamental na maneira como os homens negros são percebidos e tratados nas esferas sociais, políticas e econômicas, contribuindo para a perpetuação de desigualdades e injustiças estruturais”.

     

    Neste sentido, o modelo de masculinidade dominante no Brasil é simultaneamente vetor de violência doméstica e produtor de vulnerabilidades específicas entre homens subalternizados. É como afirma Thiago Guadalupe (2024), “para cada modelo de masculinidade hegemônica existe o contraponto em forma de visão subalterna, como dos homens negros e dos homens homossexuais”.

    Guadalupe (2024) em tese de doutorado onde estudou grupos reflexivos com homens autores de violência contra mulheres identifica como o recorte de classe, raça, gênero/sexualidade tem o condão de criar masculinidades hegemônicas de um lado e subalternizadas do outro. Ele concorda que a violência do homem é um problema central em nossa sociedade e que, sobretudo, “a violência do homem negro simplesmente reflete os estilos e hábitos da violência do homem branco”. O autor identifica, ainda, como as expressões das masculinidades decorrem para a violência, principalmente contra mulheres negras, “sendo a violência contra mulheres negras a forma mais aceitável de expressão da masculinidade”.

    Esse existir, seja hegemônico ou subalterno – mas violento – recai, sobretudo, sobre os corpos de mulheres negras. No Espírito Santo, por exemplo, o Painel de Monitoramento da Violência Contra Mulher da SESP apresenta que a maioria das mortes violentas femininas são de mulheres pretas e pardas. Entre 2018 a 2023, as mulheres pretas e pardas representaram 77% das vítimas desse crime.

    Sueli Carneiro em A construção do outro como não-ser como fundamento do ser” (2005) já afirmava a existência de existência de um dispositivo de racialidade/biopoder que opera na sociedade brasileira a fim de produzir e reproduzir um sistema de supremacia e subordinação racial, processos que processos que consolidam hegemonias e subalternidades segundo o pertencimento racial. Essas representações sobre a racialidade “atuam impactando os processos de morbidade e mortalidade, fazendo do biopoder um operador na distribuição de vitalismo e morte de forma sempre desequilibrada do lado da morte para os grupos raciais considerados indesejáveis”. Assim como ela, GONZALEZ (2020) também apontou as profundas desigualdades raciais existentes na América Latina e no Brasil, que se inscrevem articuladamente na desigualdade sexual. É uma descriminação dupla para essas mulheres não brancas, pois “o duplo caráter da sua condição biológica – racial e sexual – faz com que elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo”. Isso nos ajuda a entender como certos corpos são alvo preferencial da violência, e como essa violência é legitimada socialmente.

    É uma violência autorizada e que também alcança as relações entre homens, que se digladiam. Entretanto, como bem sustentado por Bola (2022), “a masculinidade não é o patriarcado”. Connell e Messerschmidt (2013) também ressaltam que essa masculinidade não é sinônimo de violência, “apesar de poder ser sustentada pela força; significava ascendência alcançada através da cultura, das instituições e da persuasão” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013). Portanto, assim como a masculinidade hegemônica não é estática e absoluta, a performance masculina não é violenta por si só. O que ocorre é que as práticas agressivas e violentas são autorizadas, quando não encorajadas, no âmbito do que é considerado “ser masculino”. A violência acaba sendo, ao mesmo tempo, a expressão dessas masculinidades, autorizada tacitamente por elas, e o modo como a dominação também se dá.

    Para Guadalupe (2024), as masculinidades como sendo construções sociais a partir de padrões de comportamento, no mesmo sentido que analisamos neste trabalho, também são passíveis de desconstrução, contudo, para isso, é preciso uma reorganização e redirecionamento por meio de muitas disputas sociais e políticas de forma ampla. Na análise dos grupos reflexivos com homens autores de violência contra mulheres, verificou que a tendência tem sido trabalhar com os atores de forma isolada, desconsiderando a relação com a parceira, o que parece ser um caminho na direção contrária ao apontado. Embora os grupos tenham por objetivo a reconstrução social da ideia de masculinidade “isso ocorre em ações práticas fragmentadas e levam em consideração apenas os próprios homens, o lugar de privilégio deles em relação às mulheres pouco é afetado”.

    Se neste trabalho estamos falando sobre como entender o exercício das masculinidades é importante para compreender a dinâmica das violências doméstica contra mulheres, também é preciso ressaltar que não somente nestas violências o estudo do gênero masculino tem algo a nos dizer. Conforme Applin, Simpson e Curtis (2022), a violência, e não somente a violência de gênero, constrói e é construída por sistemas de gênero patriarcal. Ou seja, é um fenômeno social complexo e multifacetado, não limitado a atos interpessoais “domésticos”. Os autores discorrem sobre como as pesquisas de violência “convencional” excluem a análise de gênero, embora se concentrem principalmente em incidentes que envolvem meninos/homens. Estas pesquisas não valorizam o gênero como centralidade na explicação chave desses fenômenos e, ao não equiparar explicitamente o gênero de meninos/homens e seus comportamentos, os trabalho não conseguem incorporar uma análise de gênero significativa, de modo que não capturam a extensão em que o gênero estrutura a vida social (Applin, Simpson e Curtis, 2022).

    A partir disso, os autores estabelecem a existência da “violência que aumenta o patriarcado” e a “violência facilitada pelo patriarcado”, terminologia a partir de tradução livre realizada por mim. A “violência que aumenta o patriarcado” é aquela que mantém ou fortalece a ordem de gênero patriarcal de uma cultura ou sociedade de forma a moldar o que é gênero e o que significa ser homem ou mulher.

    Já a “violência facilitada pelo patriarcado” é aquela que decorre da estruturação patriarcal das sociedades, pois ela molda vários aspectos da violência, incluindo dizer se os atos são percebidos como ilegais, violentos ou desviantes, e se são ou não encorajados pelos arranjos institucionais e culturais. Dessa forma, “a violência facilitada pelo patriarcado resulta de atitudes culturais, normas, práticas, leis e arranjos institucionais vinculados aos patriarcados que produzem, encorajam, legitimam, normalizam e/ou justificam práticas violentas”. A violência facilitada pelo patriarcado assegura as estruturas para que elas continuem existindo e a violência que aumenta o patriarcado beneficie seus agentes por sistemas hierárquicos e de dominação possibilitando a reiteração de atos violentos(Applin, Simpson e Curtis, 2022). Ou seja, o patriarcado como estrutura é alimentado pela violência, que consente e ao mesmo tempo permite aos indivíduos a expressão dessa violência, em um diálogo interativo.

    A construção das masculinidades é forjada e determinada, em parte, pela conjuntura social de tempo e espaço onde estão inseridas. Elas servem ao propósito de impor e reafirmar a dominação patriarcal e contribuir para sua manutenção, promovendo deliberada e conscientemente a reprodução do poder. Ao mesmo tempo, a ordem de gênero dentro das sociedades facilita e molda a violência em contextos específicos (Applin, Simpson e Curtis, 2022).

    Portanto, entender as dinâmicas sociais produzidas a partir do exercício dessas masculinidades aponta para direção do entendimento do fenômeno da violência dentro e fora do contexto doméstico, e pode ser a chave para melhores proposições políticas no enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres.

    Analisando os dados apresentados, nos parece, assim, que a Lei Maria da Penha tem se revelado insuficiente em interromper os ciclos de violência enraizados em aspectos culturais profundos da sociedade brasileira. A violência doméstica, longe de ser um fenômeno isolado, reflete um contexto mais amplo de relações de poder que sustentam a dominação masculina e a subordinação das mulheres. O efeito dissuasório da Lei não parece surtir efeito, haja vista o crescente aumento dos crimes contra mulheres praticados no contexto doméstico. Tampouco a tipificação penal do crime de Descumprimento de Medida Protetiva de Urgência parece ter alterado esta sistemática.

    Entendemos que a formação colonial, hierárquica e excludente do país permite – e se retroalimenta com – a estruturação de masculinidades que se expressam com violência, mesmo que essas estruturas e essas masculinidades nem sempre sejam objetivas e universais, cabe refletir outras formas de entender a gênese da violência doméstica. Nas palavras de Applin, Simpson e Curtis (2022), “não basta dizer que gênero importa, precisamos entender como e por que isso importa”.

    Dessa forma, para compreender e enfrentar a violência no Brasil, é necessário reconhecer sua vinculação com as estruturas patriarcais e com as construções sociais da masculinidade. Somente ao desafiar esses padrões e promover novas formas de ser e estar no mundo poderemos vislumbrar uma sociedade menos violenta e mais equitativa.

    Terminamos este resumo citando as palavras de JJ Bola de que é preciso “imaginar e manifestar uma masculinidade que não dependa do patriarcado para existir, uma masculinidade que enxergue a necessidade da igualdade de gênero não apenas como ferramenta de sobrevivência, e sim como um impulso para prosperidade” (BOLA, 2020).

     

     

    [1] Nesta categoria estão incluídos os homicídios dolosos, os feminicídios, os latrocínios, as lesões corporais seguidas de mortes, as mortes de policiais e as mortes decorrentes de intervenção policial e ela é um termômetro para a mensuração dos níveis de violência do Brasil, independentemente do tipo penal ou da legitimidade de cada ocorrência registrada.

    [2] O Código Penal estabelece que a lesão será considerada grave quando resulte: Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função; aceleração de parto e outras mais grave.            

     

  • Palavras-chave
  • autoritarismo, masculinidades, patriarcado, violência doméstica
  • Área Temática
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O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!

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