Este trabalho propõe uma aproximação entre a obra literária Água Funda (1946), de Ruth Guimarães, e o conceito de redução sociológica, formulado por Guerreiro Ramos, com o intuito de discutir os limites e as possibilidades do campo do Pensamento Social Brasileiro, especialmente no que tange à sua historiografia e aos mecanismos de construção de cânone. A partir da interseção entre literatura e sociologia, busca-se compreender como esses dois intelectuais periféricos — ambos negros, atuando em campos distintos, e historicamente marginalizados — desafiaram os paradigmas eurocêntricos de produção de conhecimento, oferecendo alternativas epistêmicas enraizadas na experiência social brasileira.
A leitura de Água Funda como um exercício de "redução sociológica" na literatura revela o modo como Ruth Guimarães desloca o foco da cultura erudita para os saberes populares, utilizando a oralidade, o cotidiano rural e as expressões do universo negro e mestiço do Vale do Paraíba como base para uma elaboração simbólica que tensiona os limites entre arte, história e sociologia. Por sua vez, a crítica de Guerreiro Ramos à importação acrítica de categorias analíticas estrangeiras na sociologia brasileira — formalizada em sua proposta de redução sociológica — sustenta a necessidade de ruptura com o colonialismo epistêmico e a construção de uma sociologia nacional autônoma, orientada pelas especificidades do contexto brasileiro. Assim, ambos os autores operam como intelectuais que reivindicam uma epistemologia situada, afirmando-se contra os processos de subordinação cultural e intelectual.
No âmbito do debate promovido por este GT, as obras de Guimarães e Ramos permitem tensionar as discussões recentes sobre o caráter multidisciplinar do PSB e seus dilemas de disciplinarização. Como propõem João Marcelo Maia e Thiago Lenine Tito Tolentino, a formação de um cânone interpretativo sociologicamente orientado tem operado como filtro para legitimação de determinados discursos e apagamento de outras formas de expressão intelectual — em especial aquelas vinculadas à literatura, à arte e à experiência popular. A invisibilidade crítica de Água Funda, mesmo sendo o primeiro romance publicado por uma mulher negra na literatura brasileira moderna, e a subvalorização da obra de Ramos fora do nicho sociológico reforçam essa hipótese. Nesse sentido, este trabalho problematiza a “interdisciplinaridade desigual” que estrutura o campo, reiterando a necessidade de considerar as produções que escapam das formas discursivas acadêmicas hegemônicas — como o romance, o conto ou o ensaio não sistemático — como constitutivas do pensamento social brasileiro.
Partindo da noção de cultura intelectual, como sugerido por Tolentino, e reconhecendo a função dos intelectuais como produtores de bens simbólicos em espaços historicamente construídos e marcados por relações de poder, argumenta-se que tanto Ruth Guimarães quanto Guerreiro Ramos ocupam lugares estratégicos na construção de um pensamento social brasileiro plural, insurgente e radicalmente democrático. Seus legados, embora muitas vezes excluídos das narrativas centrais do PSB, desafiam os critérios canônicos que delimitam quem pode ser reconhecido como intérprete do Brasil.
Por fim, o trabalho busca contribuir para o alargamento da noção de Pensamento Social Brasileiro, propondo que práticas culturais e intelectuais oriundas das margens — como a literatura de Guimarães e a crítica sociológica de Ramos — sejam integradas ao debate historiográfico sobre o campo. Essa reconfiguração exige a ampliação dos métodos e objetos da historiografia do PSB, bem como o enfrentamento dos mecanismos de silenciamento que, historicamente, relegaram ao segundo plano intelectuais, formas e experiências que não se ajustavam às expectativas epistêmicas do cânone dominante. Ao articular literatura e sociologia como formas legítimas e complementares de reflexão social, este estudo reafirma o potencial transdisciplinar do campo e convida à reavaliação crítica de seus fundamentos.
O 4º Seminário de Pensamento Social Brasileiro: intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, será realizado entre os dias 2 e 6 de junho de 2025, no formato híbrido. A programação presencial será realizada nas dependências do CCHN-Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, enquanto a programação virtual será transmitida pelas páginas oficiais do evento no YouTube e pela DoityPlay. Nesta edição contaremos com Conferência de Abertura, Grupos de Trabalho (modalidade virtual) e Conferência de Encerramento. Esperamos retomar o diálogo proposto nas edições anteriores do evento (1º SPSB, 2º SPSB e 3ºSPSB) que resultaram na publicação de livros oriundos das áreas temáticas presentes anteriormente (Coleção Pensamento Social Brasileiro-Volume 1 Volume 2 Volume 3 Volume 4), publicarmos novos livros oriundos desta edição do evento e que novas conexões possam ser criadas. Com esses sentimentos de alegria e reencontro, lhes desejamos boas-vindas!