A defesa da dimensão cultural da experiência humana está presente em documentos de organizações transnacionais a partir do final da II Guerra Mundial, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) até outros divulgados no início do presente século, que consideram o alargamento do conceito de cultura e a ascensão de uma economia baseada no saber para formular princípios norteadores do desenvolvimento envolvendo livre intercâmbio e circulação de ideias, expressões, obras, bens e serviços culturais. A compatibilização conceitual entre cultura e desenvolvimento remonta ao relatório Nuestra Diversidad Creativa (1996), que aponta noções sobre o desenvolvimento como ampliação das possibilidades humanas, a cultura como maneira de viver em conjunto e os fins do desenvolvimento justo, associando direitos econômicos e políticos a questões sociais e culturais. Entre tensões, contradições, divergências e convergências, esta correlação vem influenciando estudos acadêmicos e políticas públicas de impacto geopolítico e comercial.
Em meio a ameaças e desmontes de políticas culturais e educacionais no Brasil, propomos um aprofundamento da visão sobre as relações entre cultura e desenvolvimento através de revisão bibliográfica irradiada a partir do pensamento de Celso Furtado, um dos formuladores do referido Relatório. Através da sistematização de argumentos que problematizam a criatividade em processos de desenvolvimento, evidenciamos uma concepção plural, que transcende parâmetros econômicos e destaca o alargamento de possibilidades e oportunidades. Sua interpretação diacrônica de conflitos e dinâmicas estruturais de sociedades, desigualdades e heterogeneidades produtivas, sociais, culturais e espaciais conduz à reflexão sobre ações estratégicas para prevenir e desconcentrar poder e acumulação (BRANDÃO, 2013).
Considera-se que o surgimento de novas estruturas sociais se enseja através de processos de desenvolvimento que envolvem uma inventividade intencional, a partir de dois processos de criatividade, um relacionado à técnica, ao instrumental que possibilita o aumento de sua capacidade de ação; e outro ao uso destes meios, os valores que vamos adicionando ao nosso patrimônio, pois “é quando a capacidade criativa do homem volta-se para a descoberta dele mesmo, empenha-se em enriquecer o seu universo de valores, que se pode falar de desenvolvimento” (FURTADO, 2019, p. 77).
A criatividade é, na concepção furtadiana, força essencial do desenvolvimento, ainda que critérios mercantis da racionalidade instrumental transmutem técnicas produtivas integrantes da memória social em ferramentas de mercantilização e de acumulação que passam a mover a evolução social (FURTADO, 2008). Sua noção de civilização industrial parte da leitura histórica da reprodução e legitimação de estruturas de poder europeias e da difusão mundial de valores culturais e padrões de consumo modernizadores e civilizatórios, na qual a racionalidade instrumental fundamenta-se na produtividade e “na inovação técnica (fundada na experiência empírica ou em conhecimentos científicos), posta a serviço de um sistema de dominação social” (FURTADO, 2008, p. 83). A peculiaridade da obra de Celso Furtado, como aponta Rodríguez (2009, p. 407), é a conexão explícita que ele faz entre cultura e desenvolvimento, apresentando “uma articulação harmoniosa dos vários componentes do todo social e de sua ”. Deste modo, o desenvolvimento é apresentado como o enriquecimento do sistema da cultura, considerado de forma integrada, global.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, C. Celso Furtado: subdesenvolvimento, dependência, cultura e criatividade. In AGUIAR, Rosa Freire. Celso Furtado e a dimensão cultural do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2013.
FURTADO, C. Cultura y desarrollo. In: Cultura y Desarrollo. Oficina Regional de Cultura para América Latina y el Caribe de la UNESCO. Tomado de Diálogo, n. 22, México, D.F., 1997. Cuba: 2003.
________________. Criatividade e dependência na civilização industrial. Ed. definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_______________. Criatividade e desenvolvimento. Eptic Online, São Cristóvão, v. 21, No. 1, jan./abr., p. 75-80, 2019. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/10916. Acesso em 22/04/2019.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: 1948. Disponível em https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em 15/10/2018.
RODRÍGUEZ, O. O estruturalismo latino-americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Disponível em https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/28400/S3389R696EL2009.pdf?sequence=1. Acesso em 27/09/2018.
UNESCO. Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (Mondiacult). México, 1982. Disponível em https://www.joinville.sc.gov.br/wp-content/uploads/2017/09/Declara%C3%A7%C3%A3o-Confer%C3%AAncia-Mundial-sobre-Pol%C3%ADticas-Culturais-Mondiacult-M%C3%A9xico-1982.pdf. Acesso em 09/10/2018
________. Nuestra Diversidad Creativa. Informe de la Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo. Oficina de Coordinación de Cultura y Desarrollo. Versión Resumida. Paris: 1996.
_______. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Paris: 2002. Disponível https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127160. Acesso em 15/10/2018.
________. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade e Expressões Culturais. Paris: 2005. Disponível http://www.ibermuseus.org/wp-content/uploads/2014/07/convencao-sobre-a-diversidade-das-expressoes-culturais-unesco-2005.pdf. Acesso em 18/10/2018.
A Ulepicc-Brasil (capítulo Brasil da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura) realiza seu oitavo encontro excepcionalmente na modalidade virtual de 12 a 23 de outubro. O evento prioriza as atividades dos Grupos Temáticos, cada qual com uma mesa e cujas atividades ocorrem em horários diferentes. Os debates são sobre as transformações no sistema capitalista e seus impactos nos campos da informação, da comunicação e das mídias, da cultura e da produção cultural.
O 8º Encontro da Ulepicc-Brasil tem o apoio da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e os anais do evento aqui representados trazem os resumos expandidos aprovados para 8 Grupos Temáticos e para a Jornada de Graduandas/os. Os Anais do 8º Encontro da Ulepicc-Brasil têm o ISBN 978-65-88480-02-1.
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