INTRODUÇÃO
A imagem idílica de uma humanidade letrada, em que os sujeitos não só se apropriariam dos dispositivos da cultura escrita, mas possuiriam os meios – racionalidade e valores universais – para se inserirem de maneira plena e ativa nos espaços produzidos pela democracia moderna, constituiu-se em uma das maiores promessas da modernidade ocidental. Mas algo se moveu. Mesmo que a intenção de produzir uma humanidade letrada ainda alimente algumas ações de agências internacionais, mesmo essas, por terem, na atualidade, a prática como eixo central da alfabetização, já trabalham com noções de pluralidade e demandas educativas específicas. Partindo desta visão mais ampla, esta comunicação oral busca problematizar as políticas de alfabetização das duas últimas décadas, tanto as de indução de organismos internacionais, quanto do governo federal, do município de Vitória e as práticas alfabetizadoras e os processos de alfabetizar-se em uma escola exclusivamente de EJA do referido município.
PROBLEMATIZAÇÃO
Paralelamente à afirmação da alfabetização enquanto direito humano fundamental como subsídio das ações da Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura (UNESCO), das políticas nacionais de alfabetização no contemporâneo e das reivindicações dos Fóruns de EJA do Brasil, vivemos atualmente uma dispersão conceitual em relação à alfabetização e ao modo de conceber o sujeito que se alfabetiza. Dentro da perspectiva de dispersão das práticas que adotamos (Derrida, 2013) – nesse caso, das práticas discursivas - desvelamos um panorama paradoxal composto por investimentos políticos em modulações subjetivas funcionais à reprodução do capital e uma abertura inventiva de práticas de liberdade, portanto, da afirmação da diferença, de dentro do mesmo repertório conceitual. Dispersão é entendida aqui como proliferação de sentidos, disseminação da diferença (Derrida, 2006).
Ao trabalharmos com a lente de Freire (2001), nos deparamos com o caráter ambíguo da educação, pois esta tanto pode libertar quanto domesticar os sujeitos. Para o educador, o agente da emancipação é o processo dialógico e não a educadora bem intencionada. É nessa perspectiva que podemos perceber uma tematização da superação subjetiva em Freire, que não fala de um sujeito e de um processo de aprendizagem pré-configurados, mas de uma processualidade subjetiva, de uma abertura radical à subjetividade e aos saberes elaborados pelo outro, que produz uma deriva.
É nessa dimensão, em que o sentido ético do pensamento de Freire se sobrepõe ao epistemológico, que o educador irá se envolver em situações que expressam toda a sua radicalidade de abertura ao outro e à sua forma de pensar. Em diálogo com Antônio Faundez, Freire (1985) rememora sua passagem por Guiné-Bissau. Naquele contexto, sua equipe de trabalho, diante da profusão de línguas de nações africanas diferentes, presentes num país recém saído da colonização portuguesa e governado por um partido comunista, propôs um trabalho pedagógico que prescindisse momentaneamente da escrita, já que os diversos grupos culturais elaboravam seus saberes e suas visões de mundo pela oralidade. A única linguagem escrita existente era a língua portuguesa, a linguagem utilizada pelo colonizador recém expulso e que não era praticada cotidianamente pelas pessoas, constituindo-se apenas na linguagem do Estado.
Assumimos também a perspectiva de Derrida (2013), que sublinha as clausuras regulatórias da linguagem, mas também as suas brechas, possibilitando práticas transgressoras. Do filósofo franco-argelino, adotamos o gesto da desconstrução. Esta é entendida não como crítica a partir de um “fora” privilegiado, mas um gesto de superação de dentro do campo da linguagem (Derrida, 2013). Nesta perspectiva o movimento nacional dos Fóruns de EJA é constituído por estudantes, gestores, educadores e movimentos sociais que interpelam o Estado a desenvolver políticas públicas que atendam às reais demandas formativas de jovens e adultos. E ao se moverem no campo das prescrições das políticas oficiais de EJA, exercem práticas de liberdade de dentro destes dispositivos de clausura.
Diante do exposto, perguntávamos acerca de quais noções de alfabetização e de sujeito que se alfabetiza emergem de documentos de indução curricular de organismos internacionais e as oficiais do Brasil. Nosso outro ponto de interrogação era acerca da capacidade de criação, escape e tradução tanto das práticas alfabetizadoras, quanto dos processos de alfabetizar-se.
Na contemporaneidade, o campo de estudos da alfabetização ampliou suas concepções acerca dos processos que envolvem a aprendizagem e o uso da linguagem escrita. Segundo Judith Kalman (2000), tradicionalmente, a premissa estritamente escolar da aquisição do sistema alfabético definia uma pessoa como alfabetizada ou analfabeta. Porém, na atualidade, uma miríade transdisciplinar de estudos nas ciências sociais e humanas concentra seu olhar investigativo nas práticas sociais de leitura e escrita, privilegiando o papel dos sujeitos no uso contextual e relacional das marcas de escrita.
Nossas intercessoras teóricas no campo da alfabetização, tanto Kalman (2000; 2003; 2009), quanto Tfouni (1988), pontuam a experiência da alfabetização como um fenômeno extra-escolar, que se engendra nas práticas sociais mais cotidianas de sociedades em que fluxos de escrita nos cercam por todos os lados. O campo social mais amplo possui agências das culturas do escrito: o mundo do trabalho, a vida comunitária, a religião, a indústria cultural, os novos dispositivos digitais. Mas os indivíduos não são passivos. Possuem performances singulares de leitura e escrita. Inspiramo-nos no historiador Edward Thompson (1981; 2010) que elaborou a noção de “auto fazer-se” da classe operária inglesa. Daí a nossa noção de ‘alfabetizar-se”.
METODOLOGIA
Assumimos os princípios de uma pesquisa-intervenção (KASTRUP, 2009), realizando uma pesquisa de campo em uma escola de EJA do município de Vitória\ES. Observamos e partilhamos a docência em uma de suas salas de alfabetização, bem como lançamos mão de um diário de campo e de entrevistas com 06 alfabetizandas e 02 alfabetizadoras. Nesta experiência de campo, procurávamos acompanhar e analisar as práticas alfabetizadoras da docência (da qual partilhamos) e os processos de alfabetizar-se das educandas, tendo como horizonte as práticas de criação, de escape e de tradução das políticas oficiais de alfabetização na EJA. Nesta experiência nos foram importantes a noção de cultura escrita de Judith Kalman (2000; 2003; 2009) e as análises de Leda Tfouni (1988; 2006).
Outro procedimento metodológico consistiu na pesquisa documental e teórica acerca das políticas de alfabetização, tendo como recorte de análise as suas noções de alfabetização e do sujeito que se alfabetiza.
CONCLUSÃO
Concluímos que as políticas de alfabetização de pessoas jovens e adultas na atualidade caracterizam-se por uma dispersão conceitual, uma proliferação de sentidos que, se por um lado estão a serviço de interesses de mercado, possibilitam práticas de liberdade. Noções como alfabetizações múltiplas, diversidade, direito, aprendizagem ao longo da vida e empoderamento permeiam os discursos de documentos da UNESCO, de políticas, programas e projetos de alfabetização oficiais de EJA, mas também de movimentos sociais, como os Fóruns de EJA. Mas no processo de tradução destas noções pelos sujeitos concretos, são inventados outros sentidos para estas noções, caracterizando o processo de tradução não como espaço-tempo de implementação de políticas, mas de traição ao sentido original das mesmas. Tanto o movimento dos Fóruns de EJA, quanto as práticas elaboradas no âmbito da escola de EJA de Vitória\ES nos sinalizam processos de criação e reelaboração de políticas oficiais de alfabetização. Se a UNESCO foi a indutora inicial da formação dos Fóruns de EJA, estes se transformaram, assim como a escola, em dispositivos de interpelação ao Estado, nas três esferas de governo. Todavia, foi possível verificar que na referida escola também há processos de reafirmação de desqualificação ou de não escuta atenta aos apelos das alfabetizandas e alfabetizadoras, como atestam as entrevistas que realizamos e falas, gestos e situações registradas em nosso diário de campo.
REFERÊNCIAS
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DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013.
FREIRE, Paulo, FAUNDEZ, Antônio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 2001.
KALMAN, Judith. Ya sabe usted, es um papel muy importante: el conocimiento de la lengua escrita em mujeres de baja y nula escolaridade. Colección Pedagógica Universitária, Cidade do México, v. 32-33, julho 1999 – junho, 2000.
KALMAN, Judith. El acceso a la cultura escrita: la participación social y la apropriación de conocimientos em eventos cotidianos de lectura y escritura. Revista Mexicana de Investigación Educativa, Cidade do México, nº 17, pp. 37-66, enero-abril 2003.
KALMAN, Judith. O acesso à cultura escrita: a participação social e apropriação de conhecimentos em eventos cotidianos de leitura e escrita. In: PAIVA, Jane; OLIVEIRA, Inês B. de. Educação de Jovens e Adultos. Petrópolis: DP et Alii, 2009.
KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (orgs.). Porto Alegre: Sulina, 2009.
KASTRUP, Virgínia; BARROS, Regina Benevides. Movimentos–funções do dispositivo da cartografia. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (orgs.). Porto Alegre: Sulina, 2009.
TFOUNI, Leda Verdiani. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.
TFOUNI, Leda Verdiani. Adultos não-alfabetizados em uma sociedade letrada. São Paulo: Cortez, 2006.
THOMPSON, Edward Palm. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
A 3ª edição do Seminário “Federalismo e Políticas Educacionais” é uma realização do Grupo de Pesquisa Federalismo e Políticas Educacionais em parceria com o Grupo Espaços Deliberativos e Governança Pública do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Gegop-Clacso), a seção estadual da Associação Brasileira de Política e Administração da Educação (Anpae-ES) e o Laboratório de Gestão da Educação Básica do Espírito Santo, contando com o apoio da rede Clacso.
Com o objetivo de debater os 30 anos da Constituição brasileira e os desafios para a afirmação do Estado democrático de direito, do federalismo cooperativo e da educação como direito social de cidadania. A partir do tema “Para onde vai a Democracia? O Brasil após 30 anos da Constituição de 1988” o evento se propõe a congregar pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, professores da educação básica e superior, estudantes, gestores e outros interessados para um balanço do Estado democrático de direito e para uma análise de conjuntura das políticas públicas, em geral, e das políticas educacionais, especificamente, no cenário de incertezas diante da crise política, institucional e econômica atual nas mesas, conferências, palestras e apresentações de trabalho.
Assim o evento realizou uma chamada pública e ampliada para pesquisadores das mais diferentes áreas submeterem suas produções à avaliação da Comissão Científica que avaliou os trabalhos em sua relevância e aproximação ao escopo do evento e à qualidade teórica, instrumental, argumentativa e discursiva para as Comunicações orais que se realizarão.
Desse modo os anais ora apresentados compõe importante sistematização das obras que serão discutidas e compartilhadas no evento.
Sejam bem-vindos/as ao nosso evento!
Sejam bem-vindos/as à Vitória!
Grupo de Pesquisa Federalismo e Políticas Educacionais
ORIENTAÇÕES PARA APRESENTAÇÃO DA COMUNICAÇÃO ORAL:
1 - Elabore a apresentação da Comunicação oral, contendo os mesmos itens do resumo expandido (título, autores, introdução/problematização, metodologia, resultados e referências).
2 - Você deverá confeccionar até oito slides para a apresentação oral, utilizando o modelo disponibilizado: (Template Slides.ppt - anexo)
3 - As apresentações ocorrerão no dia 01/11, entre 14:00 e 18:00, conforme atribuição de salas por eixo temático.
4 - O tempo de apresentação é de no máximo 15min e estarão disponíveis notebook e projetor multimídia para arquivos em formato .pdf.
Caroline Falco Fernandes Valpassos | COORDENAÇÃO COMISSÃO CIENTÍFICA (ANPAE-ES) |
Andressa Mafezoni Caetano | PPGMPE / UFES |
Dulcinea Campos Silva | PPGMPE / UFES |
Eduardo Augusto Moscon de Oliveira | LAGEBES |
Elimar Leal | ANFOPE-ES |
Flávia Costa Lima Dubberstein | SEME - CARIACICA |
Itamar Mendes da Silva | PPGMPE / UFES |
Lara Carlette | UEPG |
Larissa Ferreira Rodrigues | PPGMPE / UFES |
Luana Almeida | UNIVAS |
Marcelo Lima | PPGE / UFES |
Michele Pazolini | IFES |
Rodrigo Ferreira Rodrigues | ANPAE-ES |
Sandra Kretli da Silva | PPGMPE / UFES |
Simone Cassini | PMSM |
Simone Smiderle | PPGE / UFES |
Suzany Goulart | CE - UFES / ANFOPE |
Tatiana das Merces | PPGE / UFES |
Tatiana Peterle | PPGE / UFES |
Vitor Gomes | PPGMPE / UFES |
Endereço Eletrônico: federalismo.ufes@gmail.com
Telefone (027) 4009-7777