Raymundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso foram dois autores que buscaram interpretar o Brasil a partir de uma análise concreta da realidade brasileira, rompendo com padrões pré-concebidos que dominavam o pensamento de suas épocas. Por um lado, Cardoso circunscreveu seu debate dentro do paradigma marxista com aportes weberianos – seguindo a tradição dominante no pensamento sociológico do período – para contestar as teses pessimistas que dominavam a esquerda intelectual brasileira. Por outro, Faoro buscou construir um pensamento que fosse completamente desvinculado do marxismo e weberianismo clássicos e que desse conta das especificidades de um Brasil que, ao não compartilhar com o passado feudal das nações de vanguarda, também não compartilharia de seu presente capitalista, pautado no cálculo racional do lucro.
Ambos os autores quiseram romper com as amarras intelectuais de seu tempo, criando teorias que pensassem um Brasil com olhos de brasileiros. Mas os dois autores chegaram a resultados muito distintos. Enquanto o pensamento de Faoro foi marcado por um pessimismo quanto ao futuro da nação, prisioneira das vontades de um estamento burocrático que sufocava a sociedade civil, Cardoso afirmava que o desenvolvimento em terras tupiniquins era possível, mesmo que de forma dependente e associada.
Não obstante, talvez por terem abandonado pensamentos pré-concebidos a respeito da realidade brasileira, os dois se utilizam de um mesmo elemento central em suas teses: o estamento burocrático derivado de um estado patrimonialista. Esse elemento é mais visível na obra de Faoro, mas não só está presente em Cardoso como também ocupa um lugar central em seu pensamento.
O presente trabalho tem por objetivo evidenciar as relações entre o pensamento de Faoro e de Cardoso, no que tangem ao papel da burocracia estatal no desenvolvimento da nação. A fim de contribuir para esse debate, apresentaremos a concepção dos dois autores com respeito ao estamento burocrático, evidenciando suas semelhanças e dissimilitudes. Iniciamos pelo pensamento de Faoro, analisando a forma como descreve a origem do estamento burocrático na obra “Os donos do poder”. Em seguida, apresentamos o pensamento de Cardoso, destacando como esse mesmo conceito está presente de uma forma transversal em toda sua obra sob os conceitos de burguesia de estado e dos anéis burocráticos.
Fica claro que, a despeito da diferença de forma presente nos dois autores, ambos tratam de um mesmo fenômeno ao retratar o aparelho do Estado no Brasil. Em primeiro lugar, para os dois autores esse estamento burocrático representa a sobrevivência de um elemento de dominação tradicional no seio do capitalismo brasileiro. Esse elemento não só sobrevive como domina o sistema político e econômico da nação.
Ambos apontam a origem do estamento no Estado patrimonialista de origem Ibérica, transplantado para o Brasil no período colonial, e concordam com o papel que o estamento desempenhou no desenvolvimento histórico do Brasil, atrasando o progresso econômico e social. Outro ponto de similitude é que, para os dois autores, o aparelhamento estatal estabelece a ponte com o mundo externo, de modo que os processos de modernização só são incorporados à sociedade após serem moldados de acordo com a vontade e o interesse do estamento.
Além disso, o conceito de burguesia de estado, presente em Cardoso, se mostra compatível, em certa medida, com o pensamento de Faoro. Cardoso cria esse conceito como forma de estabelecer uma relação entre estamento e classe, e aponta sua origem para o início da industrialização no Brasil, por volta da década de 1930 e 1940. Faoro, ao abordar o mesmo período histórico, também põe em evidência o domínio direto do Estado sobre a atividade industrial e, quanto à relação entre classe e estamento, é preciso lembrar que o conceito de classe presente em Faoro não é o mesmo utilizado pela análise marxista (compatível com a interpretação de Cardoso). Portanto, dizer que parte do estamento realiza o papel reservado à burguesia de exploração dos meios de produção não é uma afirmação incompatível com o pensamento de Faoro.
Um último elemento de concordância, e talvez o mais significativo, é que tanto para Faoro quanto para Cardoso a existência do estamento no seio do capitalismo moderno do Brasil não representa um elemento anacrônico, mas sim a especificidade do capitalismo possível nessa nação: o capitalismo politicamente orientado para o primeiro, e dependente-associado para o segundo. Digo que talvez esse ponto seja o mais significativo posto que é o ponto no qual os dois autores divergem da maioria dos interpretes do Brasil, de vertentes que vão desde a liberal até a marxista, que apontam a sociedade tradicional como um ponto transitório na passagem para o capitalismo.
Como ponto de discordância, o único que incompatibiliza o pensamento dos dois autores, derivado da preocupação de Cardoso em circunscrever sua análise no âmbito do discurso acadêmico que dominava a sociologia em sua época, diz respeito à autonomia do estamento frente às classes. Faoro é enfático ao destacar que o estamento burocrático domina a nação mantendo-se acima do conflito entre as classes, representando somente seus interesses. Já Cardoso argumenta que, por meio dos anéis burocráticos, os interesses das classes são garantidos pelo estamento, de modo que esse não é um corpo completamente alheio aos anseios da sociedade.
Por fim, podemos resumir o debate nos seguintes termos: no pensamento de Cardoso, o estamento burocrático aparece como uma instituição um pouco enfraquecida, comparada com a forma que lhe dá Faoro; mas há uma concordância entre os dois autores de que não é possível compreender o desenvolvimento capitalista no Brasil sem levar em consideração as forças políticas que dominam a nação.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos