Para provar a tese de que uma revolução socialista era possível na Rússia do início do século XX, Vladimir Lênin travou um debate com o grupo populista-nacionalista conhecido como narodniks, no qual evidenciou a existência de relações capitalistas de produção nesse país, como também o modo pelo qual o capital imperialista dos países da Europa Ocidental influenciava em seu desenvolvimento.
Pouco mais de 60 anos depois, um debate similar foi traçado na América Latina tendo de um lado o Marxismo Ortodoxo, representado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), que apregoava a inexistência do capitalismo nos países latino-americanos e, de outro, os teóricos brasileiros da corrente que veio a se chamar “Teoria da Dependência”, separados em duas articulações distintas. Esses últimos buscavam comprovar a tese de que não só o capitalismo já se encontrava presente na América Latina, como esse capitalismo só poderia se apresentar em uma forma dependente com relação aos países centrais.
Diante disso, a proposta da pesquisa que apresentamos é a de analisar a influência do pensamento de Lênin nesse debate dos meados do século XX, avaliando como seus argumentos reaparecem no debate latino-americano. Nossa hipótese é de que seus argumentos aparecem divididos em dois grupos de teóricos: de um lado, aqueles que se focam nas relações de competição entre o capital nacional e o capital estrangeiro dos países avançados – liderados por Ruy Mauro Marini; de outro aqueles que se voltam para as relações de poder dentro da sociedade e a sobrevivência de estruturas tradicionais de dominação nos países de capitalismo atrasado – que teve em Fernando Henrique Cardoso seu maior expoente.
O presente tema de pesquisa se mostra profícuo e necessário em um momento histórico marcado pela queda da hegemonia do pensamento neoliberal, em que renasce o debate sobre os limites e possibilidades de desenvolvimento capitalista nos países periféricos do sistema capitalista mundial, tais como o Brasil. Resgatar as bases de uma das principais teorias que se debruçou sobre o tema nos meados do século passado é um ponto imprescindível para dar continuidade ao debate hoje.
Para atender aos objetivos propostos, apresentamos em nosso trabalho as teses do debate russo – divididas entre os autores populistas e Lênin –, seguido pelas teses dos principais autores do debate brasileiro – Ruy Mauro Marini e Fernando Henrique Cardoso. Com isso, percebemos a existência de muitas similitudes entre os debates travados por Lênin e os narodniks e pelo PCB e as vertentes da Teoria da Dependência. Em primeiro lugar, a despeito de se considerar herdeiro do pensamento leninista, o PCB adota argumentos compatíveis com os narodniks e contrários ao próprio Lênin. O partido considerava que a realidade brasileira era preponderantemente dotada de relações semifeudais, similar ao pensamento do populismo russo. Da mesma forma que Lênin criticou seus contendores por desconhecerem a realidade prática da sociedade da qual discutiam, as vertentes da Teoria da Dependência também assim criticaram o pensamento do PCB. Ademais, tanto o PCB quanto os narodniks não reconheciam a possibilidade da sobrevivência das estruturas tradicionais no sistema capitalista. No entanto, o destaque para a posição do PCB diz respeito ao seu posicionamento quanto à força e ao papel da burguesia. Nesse ponto, o partido é totalmente contrário a todas as outras vertentes, apontando a possibilidade de uma aliança entre o proletariado e a burguesia para a consecução de uma revolução democrático-burguesa, posição que o partido foi obrigado a rever após o golpe militar de 1964 no Brasil.
A vertente da Teoria da Dependência de Ruy Mauro Marini, a despeito de criticar a leitura que o PCB faz da realidade, acaba por resgatar todas as demais argumentações dos populistas russos elencadas nessa sessão. Essa vertente aponta que, apesar do capitalismo ser o sistema existente nos países periféricos, seu desenvolvimento era impossível (mas também não necessário). A semelhança com o pensamento de Lênin se resume no reconhecimento da existência de uma classe proletária, capaz de dirigir um processo revolucionário.
Já a vertente de Fernando Henrique Cardoso, mesmo apresentando um método dialético tão distinto do utilizado por Lênin, apresenta um argumento muito próximo da postura leninista, utilizando quase dos mesmos argumentos desse autor para criticar a vertente anterior. As ressalvas vão para a forma específica como as estruturas tradicionais aparecem transformadas no capitalismo dos países atrasados (na figura da Burguesia de Estado) e para o abandono da postura revolucionária socialista (totalmente incompatível com o posicionamento de Lênin) e da visão subsumida que as alternativas dessa vertente colocam.
Um ponto interessante de se observar é que todas as vertentes que consideram o capitalismo impossível não o consideram necessário (e vice-versa). Essa postura nos parece um sintoma de um certo voluntarismo na elaboração desses pensamentos. Já para aqueles que acreditam que o capitalismo é tanto possível quanto necessário, cabe destacar a divergência na forma como essa necessidade se concretizaria: para Lênin, o desenvolvimento capitalista deveria ser guiado pela ditadura do proletariado; para o PCB deveria ser alcançado por uma revolução burguesa nos moldes da Revolução Francesa; já para Cardoso, não haveria a necessidade de uma revolução (nem burguesa e nem socialista) para o desenvolvimento das forças produtivas.
Por fim, como Marx aponta na obra “18 Brumário de Louis Bonaparte”, os fatos históricos acontecem duas vezes: uma vez como tragédia outra como farsa. Parece que algo similar tem ocorrido no debate dentro do marxismo como uma evidência de que os esforços de interpretação de um determinado momento pouco são utilizados para a construção do conhecimento em momentos posteriores. Nesse sentido, nos parece que a repetição desse debate histórico se repete não como farsa, mas antes como uma verdadeira comédia, onde os diversos personagens teimam em escorregar nos mesmos erros que seus precedentes.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos