A educação infantil em tempo integral: um diálogo com o pensamento social brasileiro

  • Autor
  • Franceila Auer
  • Resumo
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    Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre o lugar da educação infantil em tempo integral na política social, tendo como premissa as contribuições de pensadores brasileiros. Historicamente, a jornada em tempo integral nas creches se constituiu sobretudo como resposta a nova institucionalidade moral, econômica e social emergente no Brasil e à vasta utilização do trabalho feminino (KUHLMANN JR, 2000).  Cabe aqui ressaltar que em pesquisa exploratória realizada por Araújo (2015) em vinte instituições capixabas de educação infantil em tempo integral, foram observadas ambiguidades no processo de matrícula, onde a vulnerabilidade e o risco social das crianças e de suas famílias bem como a comprovação das mães trabalharem fora do lar aparecem determinantes na seleção das crianças para frequentarem o tempo integral.

    Logo, a entrada das crianças nessas instituições não acontece necessariamente pelo reconhecimento público do seu direito, mas sobretudo, pelo enquadramento a uma condição de necessitadas (SPOSATI, 1989), reflexão esta que Telles (1999) denomina de “mérito da necessidade”. Apesar de todas as crianças terem o direito à educação, selecionam-se algumas para frequentarem o tempo integral, para tanto, a asserção ao seu direito é discriminada na medida em que suas famílias precisam comprovar o “mérito da necessidade” para efetuarem as matrículas.

    Há que se destacar que o direito à educação infantil é um direito de todas as crianças de zero a cinco anos de idade reconhecido na Constituição Federal (1988), além disso, também se trata de um direito dos pais trabalhadores, desse modo, assegura para eles, a assistência aos seus filhos e outros dependentes na educação infantil organizada pelo atendimento das crianças de no mínimo quatro horas diárias para o tempo parcial e de no mínimo sete horas diárias para o tempo integral. Barbosa, Richter e Delgado (2015) ressaltam que as instituições brasileiras de educação infantil em tempo integral vêm se desenvolvendo de formas distintas, dentre elas, identificam a forma assistencialista. Tendo em vista que as crianças são os sujeitos mais afetados pela pobreza e violência (CARVALHO, 2014), a assistência no tempo integral vincula-se à “[...] superação da pobreza, de proteção das crianças enquanto suas mães e pais trabalham, de compensação das “deficiências” sociais e culturais” (BARBOSA, RICHTER, DELGADO, 2015, p.106). 

    Considerando que o Estado cria formas para intervir na pobreza e nas desigualdades sociais, o tempo integral se aproxima de uma política social ao visar suprir com certas necessidades das crianças desfavorecidas socieconomicamente e colaborar para seu bem estar. Segundo o Texto Referência para o Debate Nacional acerca da Educação Integral (TRDNEI - 2009), a análise de desigualdades sociais considera “[...] tanto os problemas de distribuição de renda quanto os contextos de privação de liberdades” (BRASIL, 2009, p.12) para construir a proposta de tempo integral.

    O TRDNEI/2009 também afirma que “não se trata aqui de criminalizar ou patologizar a pobreza, mas de construir soluções políticas e pedagógicas criativas e consequentes para o combate às desigualdades sociais” (BRASIL, 2009, p.14). Partindo do pressuposto que as desigualdades sociais são fruto da ausência de uma corresponsabilidade pública na dinâmica societária, o tempo integral como uma medida emergencial não conseguiria combatê-las, tal problema poderia ser realmente revertido se interpelasse responsabilidades individuais e coletivas, além dos desconfortos já gerados na sociedade (TELLES, 1999). Para além de ações isoladas do Estado, é preciso que toda a sociedade se organize para proteger efetivamente as crianças e seus direitos, para tanto, deve-se assumir uma postura responsável, ética e política que não se reduza apenas em medidas paliativas.

    Ao discorrer sobre o tempo integral na educação, o TRDNEI/2009 limita “[...] o direito à educação em tempo integral às famílias de menor renda, contrariando, em certa medida, a Carta de 1988, cuja determinação é a de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 2009, p.22). Nesse sentido, reforça-se uma prática ambígua do direito à educação, isto é, que é de todas as crianças, mas que ao mesmo tempo se destina principalmente àquelas consideradas necessitadas sob o ponto de vista socioeconômico.

    De acordo com Carvalho (2014), entende-se que políticas sociais podem colaborar para a resolução de problemas na sociedade, por exemplo, “[...] na privação dos direitos das crianças e dos adolescentes pobres, que demandam políticas de proteção social” (CARVALHO, 2014, p. 17). Contudo, segundo Sposati (1989), a tendência das ações dessas políticas é recriar discriminações ao serem seletivas e não de fato, diminuí-las. Telles (1999, p.94) complementa a discussão ao ressaltar que para os mais pobres está reservada a assistência social, “[...] cujo objetivo não é elevar condições de vida mas minorar a desgraça e ajudar a sobreviver na miséria”.  

    Longe de subestimar a provisão e a proteção social das políticas sociais, em uma sociedade desigual, os problemas econômicos e sociais são fundamentalmente políticos, assim, tais políticas não são suficientes para subverter a privação dos direitos de determinados sujeitos. Também vale ressaltar que artifícios de assistência social como o tempo integral na educação infantil constituído especialmente para os mais necessitados da sociedade se aproxima de um mecanismo compensatório de concessão do direito à educação como se fosse um “ato de ajuda” e não sobretudo um direito de todas as crianças reconhecido constitucionalmente.

     

    Referências

    ARAÚJO, Vania Carvalho de. O tempo integral na educação infantil: uma análise de suas concepções e práticas. In: ARAÚJO, V. C. de. (Org.). Educação infantil em jornada de tempo integral: dilemas e perspectivas. Vitória: EDUFES, 2015.

    BARBOSA, Maria Carmem Silveira; RICHTER, Sandra Regina Simonis; DELGADO, Ana Cristina Coll. Educação Infantil: tempo integral ou educação integral? Educação em Revista, Belo Horizonte, v.31, n.04, p. 95-119, 2015.

    BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: . Acesso em: 14. Mai. 2019.

    BRASIL. Educação Integral: texto referência para o debate nacional. Brasília: MEC/SECAD, 2009a, 52p. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2019.

    CARVALHO, Levindo Diniz. Crianças e infâncias na educação (em tempo) integral. Educação em Revista, 2014. Disponível em: http://www.scielo.br>.
    Acesso em: 15 Set. 2019.

    KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Histórias da educação infantil brasileira. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 14, p. 5-18, 2000.

    SPOSATI, Aldaiza. Os direitos (dos dessastidos) sociais. São Paulo: Cortez, 1989.

    TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

  • Palavras-chave
  • tempo integral, política social, pensamento social.
  • Modalidade
  • Comunicação oral
  • Área Temática
  • AT6 - Educação e cultura no pensamento social e educacional
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