Mantida durante as últimas décadas numa sorte de sótão empoeirado do pensamento social brasileiro, a teoria marxista da dependência, surgida e impulsionada na década de 1970, oferece pistas e contributos que merecem revisita, em especial diante desta conjuntura atual marcada por profundos retrocessos no campo social. Noções como a de colonialidade do poder, formulada por Quijano, assim como a de sistema-mundo moderno, de Wallerstein, bebem de algum modo desta fonte.
Em sua empreitada particular, Ruy Mauro Marini buscou o cerne das respectivas relações de produção nesse sistema. Chegou a conclusões consistentes quanto à lógica concentradora da dependência, para além da tese cepalina do intercâmbio desigual, proporcionando uma compreensão minuciosa dos “motores” da economia política entre países do "centro" e das “periferias”.
Apesar de não utilizar esse léxico e de não se dedicar a essa abordagem, seus escritos permitem conexões com a presença ativa de traços profundos de colonialismo. Destacam-se no pensamento da "Dialética da dependência" dele duas linhas – uma mais econômica (a dependência pela e continuidade da superexploração do trabalho) e outra de caráter mais político (o recurso ao subimperialismo nos contextos periféricos), ambas interligadas.
(...) [F]rente ao parâmetro do modo de produção capitalista puro, a economia latino-americana apresenta peculiaridades que se dão às vezes como insuficiências e outras – não sempre facilmente distinguíveis das primeiras – como deformações. Não é, portanto, acidental a recorrência, nos estudos sobre América Latina, da noção de pré-capitalismo [grifo do autor]. O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que nunca poderá se desenvolver, pela sua estrutura global e pelo seu funcionamento, da mesma forma como foram desenvolvidas as economias capitalistas chamadas avançadas. Portanto, o que se tem, mais que um pré-capitalismo, é um capitalismo sui generis que só cobra sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto a nível nacional como, e principalmente, em nível internacional” (MARINI, 2008: 108)
A explicação de Marini para o subimperialismo como fenômeno não apenas econômico, mas político e sociológico, é lapidar. Argumenta ele que:
“Desde os projetos de integração econômica regional e subregional até o desenho de políticas agressivas de competição internacional, assiste-se em toda a América Latina à ressureição do modelo da velha economia exportadora (...). Nos últimos anos, a expressão acentuada dessas tendências no Brasil nos levou a falar de um subimperialismo. Não pretendemos retomar aqui o tema, já que a caracterização do subimperialismo vai mais além da simples economia, não podendo ser levada a cabo se não recorrermos também à sociologia e à política. Limitar-nos-emos a indicar que, em sua dimensão mais ampla, o subimperialismo não é um fenômeno especificamente brasileiro nem corresponde a uma anomalia na evolução do capitalismo dependente (MARINI, 2008: 149)
São pelo menos três os contributos advindos do subimperialismo: o diagnóstico de uma dependência político-econômica profunda e combinada nas periferias do sistema; a necessidade de projetos/agendas de mudança para além das superfícies e a advertência quanto à reprodução de ordens imperiais.
Já na Introdução do seu artigo intitulado “A categoria político-cultural da amefricanidade”, de 1988, a intelectual feminista negra Lélia Gonzalez propõe um enfoque até então pouco usual para a compreensão da formação histórico-cultural brasileira. Como contraponto à ideia de “um país cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias, brancas”, ela realça a presença de “uma América Africana[4] cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sem, ter o seu nome assumido com todas as letras: Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural [grifo da autora] brasileira tem no racismo o seu sintoma por excelência)” (GONZÁLEZ, 1988: 69). No entendimento da autora, portanto, “todos os brasileiros (e não apenas os “pretos” e “pardos” do IBGE)” seriam ladinoamefricanos.
O racismo no continente carregaria consigo a capacidade, assim, de ser “suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento [destaque meu]”.
“Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela [ideologia da branquitude] reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura” (GONZÁLEZ, 1988: 69).
Desse modo, a amefricanidade - que buscava enfrentar esses efeitos de estilhaçamento/fragmentação da identidade racial com uma valorização de matrizes/diásporas africanas a fim de fazer frente, principalmente, à ideologia da branquitude - é conceituada, em outro artigo da mesma autora, como:
“um processo histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodação, reinterpretação, criação de novas formas) referenciada em modelos africanos e que remete à construção de uma identidade étnica. [O valor metodológico desta categoria] está no fato de resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo” (GONZÁLEZ apud BARRIOS, 2000: 23).
Para ela, a amefricanidade se constituía de uma cultura negra que, enquanto parte de uma ancestralidade mítica, se referenciavam “em propostas alternativas de organização social: os quilombos no caso do Brasil e, em outras partes das Américas, organizações similares designadas como cimarrones, cumbes, palenques e maroon societies” (GONZALEZ, 2000).
A amefricanidade traz à superfície uma chave distinta de interpretação da sociedade dita “nacional”, que fortalece outros três movimentos relevantes para sentidos descoloniais no âmbito da intelectualidade interna/doméstica, pautada por sua profunda “hermenêutica de elite” (HASHIZUME, 2013). O primeiro deles é o do fortalecimento de outras/os agentes históricos formuladoras/es de ideias/projetos, sujeitos de saberes/poderes e propositores/as também de modos de vida. O segundo é o da autonomia também com relação a correntes intelectuais dos movimentos negros dos “centros”, em particular dos EUA. E o terceiro movimento é o da sinalização, assim como no caso das reflexões em torno do subimperialismo, para o sentido de uma radicalidade propositiva frente ao poderoso edifício capitalista-colonial.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos