A personagem Capitu, do romance machadiano Dom Casmurro (1899), é uma das mais conhecidas da literatura brasileira. Uma das questões suscitadas pelo romance – teria Capitu sido infiel? – ocupa um lugar chave nas interpretações da obra. De certo modo, Capitu se tornou um “fenômeno cultural”, pois, ao longo do tempo, a personagem se deslocou do romance e passou a circular fora da literatura, como uma palavra, uma ideia, um significante. Vemos menções a seu nome não apenas nos variados debates da crítica literária brasileira ou entre alunos nas aulas de literatura, mas também em filmes, em canções, em discussões de Direito, nos espaços culturais ou políticos dos jornais, e até mesmo em debates acirrados nas redes sociais. Um exemplo ilustrativo do uso da imagem da personagem criada por Machado de Assis é a chamada “Operação Capitu”, um desdobramento da Lava Jato em 2018, que investigou empresários que teriam praticado obstrução de justiça. O nome da operação foi escolhido, segundo os investigadores da Polícia Federal, porque a personagem de Machado era “dissimulada”, dona de “olhos de cigana oblíqua”, tal como os investigados na operação.
Considerada uma personagem “dissimulada” por grande parte dos leitores de Machado desde o final do século XIX, que não tinham dúvida da traição de Capitu, chama atenção que é apenas na segunda metade do século XX que a fortuna crítica do romance colocou questões sobre a parcialidade com que o narrador julgava sua mulher. O quadro de interpretações se alterou especialmente quando a professora estadunidense Helen Caldwell, em The Brazilian Othello Of Machado de Assis (1960), incomodou-se com a leitura patriarcal que Bentinho fazia de Otelo, de William Shakespeare, e indicou que era preciso desconfiar da autoridade do cavalheiro Bento Santiago, que poderia ser o verdadeiro réu da história, já que ele dava diversas pistas de um comportamento instável e excessivamente ciumento. Na esteira dessa chave de leitura, os críticos brasileiros Silviano Santiago e Roberto Schwarz não apenas desconfiaram do narrador, como também acrescentaram elementos da vida social brasileira em sua caracterização. No ensaio “Retórica da Verossimilhança” (1969), Santiago sugere que prestemos atenção à “consciência pensante do narrador”, um homem já sexagenário, ex-seminarista e advogado de profissão (ligado à arte de escrever e de persuadir), que combinava, portanto, o ponto de vista dos bacharéis e a moralidade dos jesuítas. Sabendo o que queria provar, a oratória do Casmurro, segundo Santiago, é o desenvolvimento verossímil de certo raciocínio que conduz ao leitor à conclusão por ele sugerida: a de que os atos da menina Capitu, muito pensante, lhe possibilitava um julgamento seguro sobre a Capitu adulta e misteriosa depois de casada. Para o crítico, o romance de Machado é emblemático do apreço da sociedade brasileira pela verossimilhança, em lugar da verdade. Schwarz, em “A poesia envenenada de Dom Casmurro” (1991), também chama atenção para a deslealdade do narrador, um tipo social respeitado por todos no Brasil, que serve de prisma para observar relações de classe e de gênero inscritas em fins do século XIX no país. Como Schwarz sugere, ainda que Capitu fizesse parte dos dependentes antes de se casar com Bentinho, seu espírito era diverso do deles, pois a moça satisfazia “os quesitos da individualização”, sabendo o que queria e os meios para alcançar seus objetivos. Entretanto, mesmo “emancipada internamente da sujeição paternalista”, ela lidava com as arbitrariedades do paternalismo em seu meio, especialmente quando o marido começou a sentir ciúmes dela, o que o levará a concluir que a “mulher com ideias próprias”, por vezes até “atrevidas”, não poderia ser outra coisa que não uma adúltera. Por isso, para o crítico, a aparência moderna do narrador se chocava com o tradicionalismo das elites brasileiras, e, diante disso, o “espírito esclarecido” de Capitu “acabava rebaixado”, submetido aos desmandos do narrador proprietário. Mesmo com distintos nuances, as interpretações de Santiago e de Schwarz contribuem para perceber diferentes problemas sociais que foram formalizados esteticamente por Machado de Assis, problemas esses que colocam em evidência traços morais e éticos que perpassam a cultura e a sociedade brasileira em diferentes contextos e regimes políticos. Não é por acaso, então, que Capitu se tornou esse “fenômeno cultural”.
Na comunicação, que é um pequeno recorte de uma pesquisa mais ampla – cujo objetivo é o de analisar os “momentos decisivos” da crítica brasileira a partir da década de 1960 – pretende-se recuperar aspectos gerais de Dom Casmurro, levando a sério a caracterização de Capitu feita pelo narrador e dialogando com as leituras tecidas por Silviano Santiago e Roberto Schwarz. Por meio desse diálogo, busca-se analisar Capitu como um “fenômeno cultural”, o que pode oferecer pistas e indícios para problematizar relações paternalistas e de gênero inscritas na sociedade brasileira, além de oferecer caminhos para discussões mais amplas sobre o que Santiago chama de “retórica da verossimilhança”. Mais precisamente, a proposta é a de descortinar aspectos da “narração não confiável”, com vistas a pensar seus efeitos e consequências na cultura e na sociedade brasileira. O que podemos apreender a partir das leituras tecidas sobre Dom Casmurro, em especial sobre a personagem Capitu, em tempos de “pós-verdade” e “fake news”? Como se constrói a importância da “verossimilhança” em lugar da “verdade”, nos comportamentos mais rotineiros de socialização?
A partir de questões como essas, e tomando como ponto de partida discussões de uma personagem ilustre na cultura brasileira, aventa-se a hipótese de abrir novos caminhos para uma agenda de pesquisa no Pensamento Social Brasileiro, que procure dialogar com dilemas do tempo presente. Se uma das características dessa área é a de “pensar o pensamento” tecido por gerações de intelectuais e de artistas que refletiram acerca das relações entre Estado e sociedade, dos limites e possibilidades da democracia, dos obstáculos estruturais aos processos de mudança social, dos processos de modernização econômica e cultural etc., o que não deixa de apontar a atualidade teórica da área de pesquisa, talvez seja o caso – e o momento histórico – de fomentarmos discussões que tenham um alcance teórico e político ainda mais amplo, não apenas para as ciências sociais brasileiras, mas também para um público não especializado. Em outras palavras, buscando avançar em um exercício de “Sociologia Pública” a partir da área de Pensamento Social Brasileiro, talvez possamos pensar caminhos para reler os clássicos intérpretes e artistas do país à altura dos desafios contemporâneos. Trata-se, pois, de um esforço teórico-metodológico de ler em novos termos o processo social a partir das ideias e de reconstruir a teoria à luz do processo histórico.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos