Desde a segunda metade do século XIX, mas principalmente no século XX, houve uma grande preocupação por parte dos estudiosos de se teorizar o surgimento da sociedade brasileira. A antropologia, na época composta em sua maioria por médicos, protagonizou a maioria desses estudos, teorias estas fortemente influenciadas pelo evolucionismo social, importado da Europa. A partir dessa perspectiva, compreendia-se que os problemas do Brasil, apontados por esses teóricos, estavam relacionados à miscigenação, colocando os povos brancos europeus no topo da evolução social, enquanto que os demais estariam em estágios inferiores; fato este que justificaria, portanto, a própria inferioridade do Brasil enquanto nação.
Ainda que esta tenha sido a ideia corrente da época, alguns autores ousaram contrariar o que era difundido em seu entorno. Manoel Bomfim, por sua vez, argumentou que o problema da sociedade brasileira não estava na mistura de raças, mas sim na sua situação enquanto um país explorado durante séculos por povos colonizadores. Segundo o autor, a relação mantida pelos países ibéricos na América Latina era de natureza parasitária, ou seja, que os colonizadores tiravam seu sustento por meio da exploração do trabalho de outros povos, neste caso, através da escravidão. Portanto, os problemas do Brasil, segundo ele, seriam provenientes desse parasitismo social, cujo este produz efeitos em diversos aspectos da sociedade, através das gerações, reproduzindo essa lógica parasitária, principalmente nas relações de trabalho.
Mesmo com o fim da escravidão, em 1888, algumas atividades permaneceram extremamente estigmatizadas por sua correlação com o trabalho escravo em si, como é o caso do trabalho doméstico, que continua, mesmo após a abolição, a ser realizado em sua maioria por mulheres e homens negros, em condições análogas à escravidão.
Na primeira metade do século XX, por sua vez, várias iniciativas por parte do Estado buscam garantir, valorizar e formalizar o trabalho no Brasil. O ano de 1943 é um marco para os direitos trabalhistas, com a Consolidação das Leis do Trabalho. No entanto, o serviço doméstico é uma das categorias que foram excluídas das medidas. Durante todo o século XX, pouquíssimas conquistas foram alcançadas no que diz respeito aos direitos das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os).
Desse modo, em 2012, o Brasil é o país com a maior população de empregadas domésticas do mundo, totalizando mais de 6 milhões. A profissão, no entanto, ainda permanecia com salários muito baixos, pouco regulamentada e, consequentemente, na informalidade. Em consequência disso, buscando a igualdade de direitos trabalhistas em comparação às demais categorias, surge no senado a Proposta de Emenda Constitucional 66/2012. Na época, a proposta suscitou diversas discussões em torno de sua aplicabilidade, e de maneira geral, não foi bem recebida pela população.
Este trabalho, portanto, faz parte das conclusões obtidas a partir dos resultados do projeto de pesquisa intitulado “Reminiscências da escravidão: o trabalho doméstico segundo os conceitos de parasitismo e hereditariedade social de Manoel Bomfim”, que buscou investigar, primeiramente, o porquê a população brasileira não reagiu positivamente às mudanças propostas pela PEC, uma vez que o objetivo desta era o de equiparar a profissão às demais, oferecendo às empregadas domésticas direitos que todos os outros trabalhadores já possuem. Também buscou-se compreender de que maneira o passado de escravidão interferiu nas relações de trabalho doméstico, em como a sociedade enxerga a profissão, através da teoria e conceitos de Manoel Bomfim. E, por último, foi realizada uma análise dos direitos trabalhistas conquistados pela categoria, desde o início do século XX, até o ano de 2015, com a aprovação da Lei Complementar 150, quando os direitos das empregadas domésticas se equiparam legalmente às demais profissões. A partir disso, a conclusão é de que a sociedade brasileira de uma maneira geral, mas principalmente a forma como ela enxerga o trabalho doméstico e quem realiza tais tarefas, é tomada por o que podemos chamar de um ethos escravista, ou seja, que existe ainda no imaginário social brasileiro uma forte influência do período colonial e do trabalho escravo.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos