Canudos foi alvo de duas destruições[1], nos últimos séculos. O povoado fundado em 1893 era motivado por uma profunda religiosidade e tinha a liderança de Antônio Conselheiro. Os sertanejos organizaram uma comunidade com princípios religiosos e por vezes igualitários, em uma fazenda que denominaram Belo Monte. Sua primeira destruição no “dia 5 [outubro de 1897], ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores”. Como foi eternizado nas últimas frases de Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha. A primeira Canudos foi massacrada “em nome” do fim da barbárie, portanto, em nome de um suposto ideário de progresso. O Brasil, recém republicano, precisava avançar no processo civilizatório e implementou, legitimado pela elite (intelectual e financeira) da época, um projeto civilizacional que não levava em consideração as especificidades de um tipo de brasileiro que sempre esteve negligenciado (REZENDE, 2001).
Anos depois do massacre, no reduto conselheirista, alguns remanescentes da guerra, bem como outras pessoas de regiões vizinhas, retornaram e reconstruíram o povoado, a segunda Canudos, que na visão de Silva (1996), se transformou no símbolo de uma minoria, dos “vencidos”. Contudo, a segunda Canudos foi apagada com a construção da barragem do açude Cocorobó, em 1969, em meio à ditadura militar, em busca da “providência tão necessária” (GALVÃO, 2009).
Diante deste reconhecimento, configuram-se como um dos interesses maiores deste estudo, as justificativas “oficiais” para as ações empreendidas na primeira e segunda destruição de Canudos e as resistências dos sertanejos na perpetuação da memória.
Vale ressaltar que se entende por justificativas “oficiais” os argumentos utilizados para as duas destruições, não somente do Estado, como também da Igreja, dos coronéis, da imprensa, ou seja, de todo um conjunto de forças sociais, políticas e econômicas predominantes em cada contexto histórico específico dos dois acontecimentos (1897/1969).
As justificativas oficiais foram buscadas em diversas fontes. No caso da primeira destruição serão utilizados tanto os materiais escritos, no calor da hora dos acontecimentos, quanto os mais atuais que também se debruçam sobre a problemática. Visando além de refletir as razões da guerra de Canudos, compreender os fundamentos construídos pelos poderes oficiais para encabeçarem um amplo processo de destruição daquele arraial no interior da Bahia.
As justificativas oficiais responsáveis para a segunda destruição de Canudos serão procuradas através de uma pesquisa bibligráfica, e em alguns documentos de fonte primária como os anais do congresso do dia 10 de maio de 1954, uma resolução da câmara dos deputados de 1963, alguns artigos de jornais (jornal A Batalha de 20 de outubro de 1940 e jornal do Brasil de 26 de março de 1969), relatórios técnicos de livros especializados na construção de barragens no Brasil, entre outros. Tais materiais vão tentar demonstrar como se criou, ao longo dos anos, uma narrativa sobre a necessidade de construir uma barragem naquele local.
Através do trabalho de campo[2], a partir da observação participante, procurou-se apreender os vários aspectos das memórias de Canudos. E como estas podem ser reconhecidas na forma de resistência.
É fácil dizer quando uma guerra começa. Mas e quando ela termina? Para quem ela termina? Será que um dia ela termina mesmo? A guerra de Canudos começou em novembro de 1896, foi quando os moradores do Arraial fundado pelo beato Antônio Conselheiro no sertão da Bahia expulsaram um grupo de policiais enviado pelo governo estadual para ameaçá-los, foi o primeiro de uma série de ataques cada vez maiores e violentos contra o povo sertanejo que se recusava a aceitar os impostos da recém proclamada República brasileira. Quase um ano depois, no dia cinco de outubro de 1897, cinco mil soldados entraram em Canudos. O arraial que chegou a reunir vinte e cinco mil habitantes atraídos de todos os cantos do sertão pela promessa de uma vida melhor. Restavam apenas quatro pessoas, um velho, dois homens e uma criança. Os soldados mataram os sobreviventes, incendiaram todas as casas e levaram a cabeça de Antônio Conselheiro para que servisse de exemplo. Era o fim da guerra de Canudos.
Mas Canudos não terminou ali. Continuou em 1902, quando um jovem engenheiro militar que testemunhou a guerra, Euclides da Cunha, denunciou as ações do governo como um crime nas páginas de Os Sertões e gravou o nome de Canudos na história do Brasil.
Continuou nos anos seguintes quando aqueles que conseguiram escapar da guerra voltaram e reconstruíram a cidade e continuou quando a segunda Canudos foi alagada para a construção de um açude, durante a ditadura militar e os moradores foram removidos dali. Continuou ao longo do século vinte quando o significado de Canudos foi disputado e remodelado por historiadores, políticos, escritores, músicos, cineastas e pensadores de todas as partes do país e do mundo. E continua até hoje. Tudo aquilo que o nome de Canudos evoca: a violência contra os pobres, a truculência das autoridades, o desprezo das metrópoles pelo sertão, o genocídio com outros nomes e bandeiras permanece atual e define o Brasil. Mais de cento e vinte anos depois da guerra, Canudos ainda não terminou.
A estigmatização dos dominados pelos dominantes percorre a formação social brasileira. O povo é alvo prioritário desse processo, em que estaria contido parte expressiva do desajuste nacional. A anulação de paisagens da história é um dos capítulos centrais para a formação da sociedade nacional. Anular para inventar. Apagar para representar.
Em Canudos, os camponeses, os negros, as mulheres, as crianças, os órfãos são transfigurados em “jagunços”. Sob tal marca são estigmatizados de fanáticos e malditos. A anulação do povo se revela pela destituição de sua própria história pela apropriação de terras e pelo extermínio de outros projetos de sociedade. Essas são as bases do projeto republicano que instituiu a necessidade de representar a sujeição popular pelo poder do Exército - o único capaz de unificar o país.
Depois de renascer de suas cinzas, Canudos foi afogada por uma represa e por isso nem as águas, nem a guerra conseguiram apagar grandes ideias. Canudos se reencontrou com o passado e hoje, de uma forma ou de outra, celebra sua história atraindo gente de todo o país e fora dele.
Quem passa rápido por Canudos hoje em dia, talvez nem sinta o peso de sua história. Mas ela está lá. Mais de um século depois da guerra, há quem se considere conselheirista. Que, segundo eles, ser conselheirista é não negar suas raízes, nutrindo-as e fortalecendo a identidade a partir do reconhecimento do que eles são. Ser conselheirista hoje é não desistir, continuar resistindo, buscar direitos, cumprir deveres e não desistir nunca, a exemplo de Belo Monte. Canudos ressurge na resistência e nos enfrentamentos de outros conselheiristas.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
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