Vertente do modernismo brasileiro, o movimento antropofágico encerra, nos meandros de seu corpus discursivo, uma visão do nosso passado colonial e do processo de formação da sociedade brasileira. Seu surgimento, em 1928, com o lançamento da Revista de Antropofagia, é coetâneo, no plano da cultura, a um momento marcado pelo arrefecimento de questões eminentemente estéticas e pela preeminência de debates em torno da identidade nacional, ganhando vulto as temáticas do primitivismo e da miscigenação. A antropofagia se inscreve nesse quadro mais amplo e enuncia um conjunto de propostas e ideias articuladas a um propósito maior de emancipação cultural e de construção de uma nação verdadeiramente moderna e autônoma. Assim, despontam imagens e reflexões, amiúde tingidas de um colorido impressionístico, inspiradas por uma pretensão de traçar os contornos da constituição de uma civilização original: miscigenada e mesmo colonizada por um grupo étnico mesclado – o português arabizado; arredia à Reforma e contraposta à ética do trabalho; composta por um povo propenso ao ócio e adepto de uma prática religiosa carregada de misticismo e com teor acentuadamente ritualístico. São características positivadas pelo discurso antropofágico, supostamente reveladoras de uma experiência civilizatória peculiar, destoante do arquétipo europeu.
São temas caros a uma produção ensaística de cunho histórico-sociológico, a um tempo herdeira e continuadora das conquistas culturais mais amplas do movimento modernista, concebida por autores de alguma maneira atrelados à sua tradição, notadamente Gilberto Freyre, com Casa-grande e senzala (1950), e Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil (1991). Freyre assevera a especificidade da formação nacional brasileira, produto da miscigenação benfazeja propiciada pela colonização realizada pelo português híbrido e plástico, favorecedora do intercurso entre a gente lusa e os povos negros e indígenas. A imprecisão e a heterogeneidade surgem como traços fundantes da sociedade, resultado de uma acomodação tensa entre tradições diversas e mesmo opostas. Um verdadeiro “equilíbrio de antagonismos”, conforme salienta Ricardo Benzaquen de Araújo (1994: 44) Traços perceptíveis na arquitetura bem como no vestuário, na culinária e no teor festivo das práticas religiosas, fruto do sincretismo entre os costumes autóctones e africanos e as expressões de um catolicismo heterodoxo, tingido de cores maometanas. Receptivo à influência árabe, apartado das fronteiras da Europa reformada, imune à penetração de uma racionalidade propriamente burguesa, Portugal se apresenta como uma nação singular e infunde esses atributos à formação social brasileira, tornada uma experiência igualmente ímpar. Por seu turno, a interpretação do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda ressalta a tenacidade da herança ibérica na constituição da sociedade brasileira, sobretudo identificada no caráter ubíquo e quase indelével da presença da cultura da personalidade na elaboração dos diferentes aspectos da vida social. Essa cultura nos teria sido legada no rastro de uma colonização pautada por um espírito de aventura, calcada na imprevidência e no desleixo bem como incapaz de fundar uma obra verdadeiramente metódica e estável. O português mesclado na Ibéria indecisa entre a Europa e a África, infenso à ética do trabalho, seria mais propenso ao ócio e ao gozo imediato de conquistas auferidas sem esforço: a “imagem invertida do protestante”, atenta Robert Wegner (2000: 34). Resulta a elaboração de uma civilização avessa à impessoalidade, à imposição de regras abstratas de convívio e à prevalência de uma racionalidade favorecedora do trabalho sistemático, esteios da ordem urbana e democrática moderna.
Este artigo tem como objetivo apreender as confluências entre o discurso do movimento antropofágico sobre o processo de constituição da nação brasileira e as interpretações sobre o tema elaboradas por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. A antropofagia parece estabelecer um diálogo relativamente assíduo com as ideias dos referidos autores, mormente subentendido, mas por vezes deliberadamente manifesto. Se em certos momentos ocorre uma mera reiteração de determinados pontos de vista, é perceptível também uma tendência mais característica de apropriação inventiva e de reinterpretação, porventura resultando em uma subversão do sentido normativo original dos argumentos. Trata-se de um item pouco explorado, mas de considerável relevância para o esclarecimento do significado de alguns dos tópicos centrais do programa antropofágico.
Para a realização deste estudo, além das obras Casa-grande e senzala e Raízes do Brasil, serão examinadas as principais referências sobre o tema proposto surgidas na Revista de Antropofagia, documento fundamental do movimento antropofágico e que guarda algumas de suas teses mais representativas. Igualmente relevantes se mostram os escritos de natureza mais filosófica de Oswald de Andrade, especialmente os ensaios A marcha das utopias (2011a), Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial (2011b) e A crise da filosofia messiânica (2011). Elaborados na década de 1950, embora não diretamente vinculados à experiência da antropofagia, ressoam muitas de suas concepções e propostas, justificando a conveniência de seu emprego para a melhor condução desta pesquisa.
A relevância do estudo proposto em boa medida está fundada no fato de se tratar de uma análise que pressupõe a percepção da antropofagia como uma experiência de certa forma integrada ao campo de investigações distintivo das denominadas interpretações do Brasil. A indagação sobre determinados aspectos do processo de construção da identidade nacional, peculiar ao discurso antropofágico, pode se revelar em diálogo com as reflexões de alguns dos mais representativos autores da tradição de pensamento social no Brasil, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda – no caso, além disso, de alguma forma atrelados ao modernismo brasileiro. Essa constatação pode abrir uma perspectiva profícua de pesquisa sobre as possíveis inter-relações entre o programa de um movimento cultural, representado por uma de suas vertentes mais significativas, e o acervo de ideias e referenciais valorativos característico daquela aludida tradição de pensamento brasileiro.
ANDRADE, O. A crise da filosofia messiânica. In:___. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011.
ANDRADE, O. A marcha das utopias. In:___. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011a.
ANDRADE, O. Um aspecto antropofágico da cultura brasileira. In:___. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011b.
ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz: Casa-Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
FREYRE, G. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950.
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
WEGNER, R. A conquista do Oeste. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos