Uma plêiade de autores do fim do século XIX e início do século XX empreendeu uma abordagem marcada pela intensa presença do gado nos sertões. Muito recorrente na literatura regionalista, essa abordagem ganhou adeptos no pensamento sobre a formação brasileira e passou a ser vista como uma tendência de interpretação do Brasil. Tendência que foi inaugurada por Antonil – Andreoni em Cultura e Opulência do Brasil (1711) e adotada por Capistrano de Abreu em Capítulos da História Colonial (1907), Djacir Menezes no Outro Nordeste (1937) e Renato Castelo Branco em Civilização do Couro (1942). Desse modo, deram continuidade a uma interpretação do Brasil marcada por três grandes temas do regionalismo nordestino: a) terra e paisagem; b) patriotismo regional; c) literatura brasileira, filha da terra. Nessa perspectiva, conquistaram um lugar na interpretação do Brasil nos marcos do novo regionalismo do pós 1930. Momento em que muitos temas serviram para transmitir ideias e conceitos que os estudiosos da formação brasileira entendiam como de maior relevância para se compreender também aquele contexto em que viviam. E, assim, puderam fornecer dados para a análise de sua sociedade. O interesse em revisitar o tema responde às inquietações estimuladas pela tese de doutorado que procurou problematizar ideias e temas sobre o sertão e o sertão piauiense, em particular. Para verificar os aspectos mais processuais dessa ideia, o presente estudo se orienta por acompanhar a problemática do sertão e, em particular, o sertão do Piauí, buscando explicar como essa perspectiva se tornou uma interpretação de Brasil ao destacar seus processos e práticas socioculturais do “ciclo do gado ou da civilização do couro” e, os modos que as gentes dos sertões instituíram um estilo de vida em suas várias feições e modalidades de conflitos, intercâmbios e recriações socioculturais. Nesse ponto, os estudiosos reconfiguraram como o vaqueiro se transfigurou em tropeiro que ao conduzir o gado sertão adentro, fez-se homem de negócios ou mascate. Eles mostraram que essa atividade típica dos sertões era regida por instrumentos diferentes, guiada por métodos próprios e movida por um tipo de gente industriosa que implantou um tipo de sociedade orientada pelo ciclo do gado, organizou e estruturou um tipo de civilização do couro. Os estudiosos, ao analisarem esse movimento pelos sertões, identificaram práticas e processos que envolviam a lida com o boi, trouxe melhorias à vida acanhada daqueles perdidos sertões. Então, aquela gente protagonizou um enfrentando das paisagens que separavam o Piauí, da Bahia e de Pernambuco e mesmo, de tão longe, levavam e traziam o gado, aproveitavam para distribuir sementes nas fazendas espalhadas por grandes extensões de terras desconhecidas. Assim, ajudaram a melhorar as estradas e vida das cidades. Mesmo com todas essas iniciativas, eram renitentes em alterar seus atributos e hábitos, principalmente ao não abandonar as suas vestes características com suas “perneiras e gibão de couro”. Por conseguinte, tornou aquele lugar o centro da civilização brasileira, que foi assimilado e transfigurado nos sertões, por uma ordem cósmica, pelos constantes e intensos movimentos de levar o boi para o interior mais distante. Então, naquele sertão “abandonado à própria sorte”, o comércio itinerante do boi movimentou a paisagem, tornando a fazenda, a casa e a capela os protagonistas das “civilizações interioranas”. Isso só foi possível porque, mesmo nos períodos de seca, quando havia uma redução significativa das atividades agrícolas, o sertão permanecia “vivo”, “agitado” com a passagem dos tropeiros guiando a boiada na procura de novas pastagens, possibilitando àquele sertão “abandonado, isolado, atrasado” viver sua perene tradição sociocultural ligando-se e articulando-se, estreitamente, entre si, refletindo e desafiando uma interpretação no e para o Brasil. Sondar essa possibilidade constituiu uma contribuição do modo como os estudiosos se tornaram os novos regionalistas no pensamento brasileiro ao reinaugurar novas condições de produção para criar um novo tipo de produto, um estilo de narrativa, com técnicas de exposição, um público a quem e como se dirigir, as ideias, estilos, formas e preocupações adequadas às novas influências teóricas, conceituais e metodológicas que remontariam o pensamento sobre o sertão, a região, o Brasil, pois fizeram dessas categorias de pensamento uma chave de releitura para compreensão da formação sociocultural brasileira, especificamente, no período que se estende de meados do século XIX até um pouco depois de 1945.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos