Diante do objetivo deste evento em debater o pensamento social brasileiro, acredito que seja de extrema relevância teórica o resgate da vida e obra de Octávio Brandão. Alagoano de Viçosa, Brandão foi um dos primeiros militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB), então Seção Brasileira da Internacional Comunista (SBIC) e teve enorme contribuição política e teórica para o partido. Inserido no início do século XX, ele foi o pioneiro na utilização do marxismo como ferramenta teórica de auxílio ao entendimento da sociedade brasileira. Apesar dessa alcunha ser creditada por alguns a Caio Prado Júnior, responsável pela publicação de Evolução Política do Brasil em 1933, foi Brandão que em 1924 escreveu a obra Agrarismo e Industrialismo, utilizando conceitos do que ele chamou (também pioneiramente no país) de "marxismo-leninismo". Pensado como um campo de disputa em seu sentido bourdieusiano, o pensamento social brasileiro desenvolveu uma espécie de cânone em que Brandão (entre outros) não está incluído. Seu esforço pioneiro foi esquecido ou descredibilizado por suas limitações teóricas na utilização do marxismo. Admitindo críticas que demonstram as limitações de Brandão como, por exemplo, o uso mecânico da chamada tríade hegeliana (tese, antítese e síntese) acredito que seu pioneirismo conseguiu galgar importantes avanços dentro do contexto em questão. E mais, conseguiu iniciar debates que teriam frutíferas discussões posteriormente. Utilizando-se de uma pesquisa teórica em desenvolvimento, tomando como base pesquisadores que se desbruçaram sobre a importância de Brandão, como João Quartim de Moraes, Alvaro Bianchi, Michel Zaidan Filho, Filipe Leite Pinheiro etc., viso mostrar que suas reflexões em Agrarismo e Industrialismo servem para inseri-lo no que costumamos nomear de pensamento social brasileiro. Se tomarmos como recorte as décadas de 1910 e 1920, Brandão foi o único a produzir teoricamente sob influência direta do marxismo-leninismo. Vale lembrar que Karl Marx é considerado um dos pilares clássicos da Sociologia, logo, seu uso pioneiro por Brandão no Brasil já demonstra sua importância como intérprete da sociedade brasileira. Diante dessas questões, defendo Brandão como um dos clássicos do pensamento social brasileiro com base em três pontos que considero centrais em sua obra: a) sua teoria da revolução, construída com base na observação das revoltas tenentistas e que colocou a pequena-burguesia como importante aliada do proletariado na revolução democrático-burguesa; b) sua análise dual da situação brasileira em que forças agraristas e industrialistas se encontravam em choque, sendo este conflito um desbobramento das disputas inter-imperialistas, representadas por ingleses e norte-americanos; c) sua busca por um marxismo autóctone, tendo em vista que suas reflexões na obra citada desenvolveu uma disputa com a interpretação postulada pela Internacional Comunista (IC). Logo, estudar e resgastar Brandão passa pelo debate dos caminhos a serem seguidos pela revolução brasileira (tema debatido posteriormente por autores diversos), da presença ou não do feudalismo ou semifeudalismo no Brasil (ideia que repercutiu em toda intelectualidade pecebista, criando produções antagônicas como as observadas em Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré) e, por último, das disputas enfrentadas por perspectivas teóricas que visam uma interpretação autônoma da realidade social. Desses três pontos centrais levantados, o último acaba ganhando um maior espaço. Isso porque Brandão não apenas surge pioneiramente como intérprete do Brasil que se utiliza do marxismo, como busca a partir deste uma análise autóctone e/ou nacional do país em que está inserido. E, assim como teóricos da envergadura de José Carlos Mariátegui, ele paga um alto preço por defender uma visão autônoma da tutelada pela IC. Neste ponto, vale lembrar o desleixo que inicialmente a IC teve com relação aos países latino-americanos. Para termos ideia dessa participação pequena da IC na região, Vladimir Lênin defendeu em seu II Congresso, datado de 1920, a tese de que a revolução nos países ocidentais centrais levariam consequentemente ao processo revolucionário nos países semicoloniais. Desta forma, existia uma relação de dependência, sendo as revoluções nos países semicoloniais uma espécie de consequência das realizadas nos países centrais. A produção teórica autônoma de Brandão nos anos 1920 é resultado desse desleixo, pois permitiu a intelectualidade do PCB certa liberdade para produzir. Entretanto, o VI Congresso de 1928 foi decisivo para o futuro de Brandão no partido. Isso porque, influenciado pelas ideias de "classe contra classe", a IC defendeu neste congresso uma posição obreirista que teria duas consequências: a) o afastamento de intelectuais do partido, pois a procura era que a organização fosse ocupada majoritariamente por operários; b) a completa oposição a alianças de classes com a pequena-burguesia, então estimada por Brandão em Agrarismo e Industrialismo, livro que influenciou fortemente o PCB em seu II Congresso de maio de 1925. O rechaço a alianças com a pequena-burguesia, foi central no afastamento de Brandão do partido. A revolução democrático-burguesa deixava de ser uma tarefa da pequena-burguesia/proletariado e passava a ser do proletariado/campesinato, seguindo os moldes russos. Como podemos perceber, apesar de ter influências da IC no tocante a utilização do feudalismo como traço característico do país (visto como um país semicolonial), Brandão divergia com relação ao caminho a ser seguido pela revolução democrático-burguesa. Isso porque sua teoria da revolução não era baseada em reflexões de fora, pelo contrário, se construíram como produtos de suas observações empíricas sobre a realidade brasileira. Afinal, foi a pequena-burguesia, organizada em torno do movimento tenentista, a classe social protagonista na desestabilização da República Velha. Foi ao enxergar essa capacidade crítica e mobilizadora desses setores pequeno-burgueses que Brandão construiu sua teoria da revolução, então mais condizente com as especificidades nacionais que a proposta pela IC. Em suma, podemos perceber a importância de Brandão para o desenvolvimento do pensamento social brasileiro e, principalmente, de um pensamento autônomo que se refletiu no que chamo de marxismo autóctone. Mesmo diante de suas limitações, comuns para aqueles que empreendem pioneiramente um debate, Brandão conseguiu se mostrar como um autor a ser estudado e analisado como um clássico do pensamento social brasileiro. Um clássico pioneiro que, mesmo após exageradas autocríticas, teve o esquecimento como consequência de sua perspectiva autônoma.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos