A “Nova República”, a Constituição de 1988 e o Partido dos Trabalhadores na perspectiva de Florestan Fernandes: elementos para a compreensão da dominação autocrática e dos papeis da esquerda no Brasil contemporâneo

  • Autor
  • Marcos Abraão Fernandes Ribeiro
  • Co-autores
  • Carlos Eduardo Santos Pinho
  • Resumo
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    Este trabalho é divido em dois eixos sequenciados. No primeiro, apresentamos a definição de autocracia burguesa formulada por Florestan Fernandes (2006), que representa uma forma privatista de condução do poder e que seria específica do capitalismo dependente e subdesenvolvido. Além desta definição, expomos as intepretações do sociólogo sobre a “Nova República” (FERNANDES, 2007), o Partido dos Trabalhadores (FERNANDES, 1989), a Constituição de 1988 e o sistema político. Nestes textos, Florestan defende que a “Nova República” não representou uma efetiva mudança social e política. Através do comando do PMDB como partido da ordem, a “Nova República” apenas confirmava o caráter contrarrevolucionário e ultraconservador da burguesia brasileira, que utilizava o Estado para reproduzir o domínio autocrático sobre a nação. Assim, a fundação de uma Nova República deveria ser baseada em uma revolução democrática, ou seja, na abertura da sociedade burguesa e capitalista por meio da democratização da riqueza, da cultura, do poder e do consequente término do domínio autocrático sobre o Estado. Nesse sentido, o PT teria o papel pedagógico de civilizar a sociedade civil, construir um novo tipo de República e uma revolução democrática que proporcionasse condições de fazer a transição para o socialismo, pois a burguesia, sobretudo sob o capitalismo monopolista, possui uma conduta ultraconservadora e de ódio à democracia. Florestan (1989) também analisou sociologicamente a Assembleia Nacional Constituinte (ANC). Para o sociólogo, a verdadeira face da ANC poderia ser visualizada pelos partidos PMDB, PFL, PDS e PTB, que representavam a composição conservadora e pautada pela defesa de interesses particularistas. A composição da ANC, portanto, demonstrava o caráter não democrático do parlamento e o privilégio de classe existente nele. Devido à representação desigual, Florestan defendia a atuação conjunta das organizações de representação do proletariado, como a CGT e a CUT, com o PT, que comporiam a linha de frente na luta por mudanças no sentido de dar possibilidade efetiva de participação aos de baixo na sociedade civil. Mesmo com todo isolamento e radicalidade de suas posturas, Florestan não deixa de apontar os fatores positivos trazidos pela Constituição, como o status legal da luta de classes; o fim dos formalismos jurídicos que escondiam o monopólio do poder dos de cima como se fosse representativo da democracia; ampliação do cenário histórico. A sociologia de Florestan, portanto, tem um caráter crítico e negador do capitalismo dependente e da autocracia burguesa, pois volta-se para os dominados através da ênfase na luta de classes e na saída revolucionária para redimir as mazelas sociais. No segundo eixo, através de uma leitura seletiva do diagnóstico de Florestan nos anos 1980, procuramos analisar o experimento social-democrata e desenvolvimentista dos governos do PT (2003-2016), pautado no crescimento econômico com incorporação social, seguido da crise contemporânea multifacetada que culminou no golpe parlamentar de 2016 (SANTOS, 2017). Nesse sentido, o Brasil constitui uma evidência empírica da constitucionalização da austeridade, da desconstitucionalização de direitos sociais e da hegemonia do capital financeiro, cada vez mais organizado, insulado das pressões democráticas, articulado do ponto de vista político e que se alimenta da dívida pública. Por outro lado, os cidadãos e eleitores são progressivamente alienados da democracia representativa de massas, que está diretamente subordinada aos ditames dos investidores do mercado financeiro globalizado e de poderosos grupos de interesse que têm acesso ao Estado por meio do lobby. A primazia da agenda de austeridade e de dissolução da Constituição Federal de 1988 evidencia, na linguagem de Florestan Fernandes, o caráter autocrático de uma burguesia que passa a exercer de maneira aberta formas privatistas e exclusivistas de exercício do poder político e segundo a qual o regime político democrático é mera conveniência, na medida em que pode ser vilipendiado quando os interesses das elites são contrariados. O modelo autocrático operacionalizado pelo autor, e que serve de subsídio teórico-conceitual para analisar a economia política do Brasil contemporâneo, promove a dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia, ao mesmo tempo em que fomenta uma associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia (FERNANDES, 1976, p. 292). Contudo, defenderemos que o conceito de autocracia deve ser pensado como uma categoria de alcance global, e não apenas como característica do capitalismo dependente. A categoria de autocracia mostra-se central uma vez que o sistema político configura-se a cada dia mais fechado em um modelo oligárquico para impedir que possa emergir a mudança social em torno de novas juventudes, religiosidades, transformações nas classes trabalhadora e média e formas inovadoras de organização política e participação (DOMINGUES, 2017, p.8).  Através do conceito de autocracia procuramos demonstrar como o PT, através do seu pragmatismo desenfreado (MIGUEL, 2019) e da incorporação da lógica neoliberal em suas políticas públicas (DOMINGUES, 2017), transformou-se em partido da ordem, pois não rompeu com o domínio autocrático-burguês sobre o Estado, que terminou sendo crucial para a sua retirada do poder através do golpe parlamentar em 2016 (SANTOS, 2017). Após a saída do PT, o regime autocrático levou a cabo uma série de medidas que foram decisivas para a concentração ainda maior da riqueza, da cultura e do poder junto às classes dominantes, como a reforma trabalhista e o teto de gastos, institucionalizados durante o governo de Michel Temer (MDB). Sob o governo Bolsonaro (sem partido), os ataques às conquistas da Constituição de 1988 se tornaram ainda mais fortes, enquanto a esquerda mostra-se fragmentada, apática e sem projeto de enfrentamento ao domínio autocrático-burguês. Ao mesmo tempo, utilizaremos a categoria de revolução democrática, pois ela contém elementos decisivos de um programa político para a esquerda que tenha como base uma efetiva transformação da realidade, esquecida pelo PT quando assumiu a Presidência da República em 2003. A sociologia crítica e pública de Florestan possui um efetivo programa de transformação profunda da realidade que necessita ser reabilitado pela esquerda a fim de que ela possa oferecer alternativas efetivas para combater a autocracia burguesa e a lógica perversa do capitalismo financeiro rentista, curto-prazista e improdutivo. Através do diálogo com a literatura contemporânea, sustentamos, portanto, a atualidade da sociologia de Florestan Fernandes, pois ela pode municiar a esquerda e as forças democráticas progressistas em torno da revolução democrática.

     

  • Palavras-chave
  • Autocracia burguesa, Nova República, Constituição de 1988, Partidos dos Trabalhadores, Florestan Fernandes, esquerda
  • Área Temática
  • AT7 - Intérpretes e interpretações do Brasil contemporâneo
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O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.

 

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