Alguns pesquisadores negros foram fundamentais para consolidar, plurarilizar e compreender temáticas raciais no caso brasileiro. A retomada de pesquisas e contribuições de pensadores, desde a década de 1950, se compreendem enquanto influentes e robustas para abranger a pluriracialidade e multiculturalidade brasileira, desafiando o imaginário da democracia racial endossado por alguns pesquisadores. Nesse sentido, trabalhos de pesquisadores negros brasileiro, sobretudo, dentro das Ciências Sociais, estruturam teorias eficientes que abrangem particularidades do locus de pessoas negras nesse contexto. Esse pensamento se materializa nas obras tratadas por pensadores como Lélia Gonzalez, que se estabelece como uma das grandes teóricas do campo das Ciências Humanas, sendo pioneira nos estudos da mulher brasileira, sempre pontuando as diferenças da mulher branca e da mulher negra. Lélia Gonzalez, foi e permanece tema de pesquisa de diversos pesquisadores como Raquel Barreto, Alex Ratts e Flávia Rios. Foi uma das primeiras mulheres a ir ao exterior levar suas pesquisas sobre a mulher brasileira, discrimação e racismo no Brasil. Gonzalez inaugurou uma grande tradição de pesquisas e até os dias atuais se estabelece como uma grande referência nos estudos supracitados.
Infelizmente, assim como outros teóricos negros, Lélia Gonzalez não possui hoje a mesma atenção que outros pesquisadores de sua época adquiriram. Algumas de suas obras estão sendo resgatadas por pesquisadores e ativistas. Esse processo tem nome de Epistemicídio, apagamento da produção e do conhecimento de outros povos que não o branco. O Epistemicídio coloca grupos não-brancos como não passíveis de serem cognoscentes, isto é, enquanto grupos incapazes de serem produtores e portadores de conhecimento. (CARNEIRO, 2005)
Durante sua trajetória Lélia abrangeu diversas temáticas e áreas do conhecimento, navegando pela história, filosofia, sociologia e antropologia. Segundo Raquel Barreto, uma das maiores pesquisadoras de Lélia Gonzalez, a pensadora desenvolveu um pensamento original partindo de mulheres negras e sujeitos negros como ponto central, formando assim um pensamento sobre a formação socio-cultural brasileira (BARRETO, 2019).
Lélia Gonzalez consolida contribuições amplas acerca das relações etnico-raciais: (1) formas e perpetuação do racismo na sociedade brasileira e em sociedades latino-americanas; (2) a posição de mulheres negras frente às desigualdades; (3) movimentos negro e as movimentações de mulheres negras frente ao racismo e sexismo; (4) identidade e cultura, e tantos outros trabalhos publicados em livros, revistas e jornais. Apresentamos agora, algumas proposições teóricas realizadas por Lélia Gonzalez e que firmam este lugar ocupado por ela.
A categoria político-cultural da Amefricanidade, é para a antropóloga, uma retomada da influência efetiva de África e de povos que já se encontravam no continente americano, em nossa formação político-cultural. É o rompimento com a concepção de que nossa formação é oriunda da influência colonizadora. Insere nesse debate também, o pretuguês, que é um conceito cunhado por Gonzalez e que está relacionado aos português falado no Brasil, que é produto da influência africana.
Discute a posição que ocupa a mulher negra na sociedade brasileira. Apresentando inclusive um debate sobre raça e gênero, caminhando enquanto categorias juntas, ao propor que enquanto mulher e negra, mulheres negras sofrem dois tipos de opressão, que as colocam em posição de setor mais inferiorizado da sociedade brasileira, antecipando inclusive discussões sobre o paradigma da interseccionalidade, proposto por Kimberlé Crenshaw no final da década de 1980.
Gonzalez se apresenta enquanto crítica a teorias hegemônicas e universalizantes e coloca em debate crítico movimentos como o feminismo hegemônico, que não considerava mulheres negras e não-brancas latino-americanas. Ingressando no debate sobre o racismo e suas perpetuações, evidencia também a divergência da consolidação do racismo em sociedade de origem anglo-saxônicas, germânicas ou holandesas e em sociedades latino-americanos. Sociedades latino-americanas se apropriam de teorias assimilacionistas e da democracia racial, como se a questão racial fosse simplesmente superada. O que torna o racismo latino-americano ainda mais sofisticado, a partir da ideologia do branqueamento, fazendo a manutenção de pessoas negras e indígenas em segmentos subordinados e subalternizados.
Após tantos anos de dedicação a formação acadêmica e a militância dentro de movimentos sociais, Gonzalez construiu um legado hoje seguido por pesquisadores brasileiros e por militantes do movimento negro. O terreno criado por Lélia proporcionou um grande desenvolvimento nas pesquisas do pensamento social brasileiro. Mesmo tendo passado por um apagamento na academia, Gonzalez é hoje resgatada por pesquisadores brasileiros e é considerada peça fundamental da produção teórica brasileira. Raquel Barreto, pesquisadora vinculada a Universidade Federal Fluminense tece algumas de suas pesquisas com base em Lélia Gonzalez e afirma a importância e relevância da autora tanto para a militância, para o pensamento social brasileiro e para nossa história. Em sua dissertação, “Enegrecendo o Feminismo ou Feminizando a raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez”, defendida em 2005, Barreto faz um mergulho nas obras de Gonzalez pontuando o esforço feito pela pensadora para a construção de uma identidade positiva para a população negra brasileira. Ademais as obras da pensadora possuem um esforço evidente de colocar a mulher negra como central nas produções acadêmicas combatendo sua invisibilização e os estereótipos racistas. Esse esforço parte de uma construção positiva da imagem negra no país, traçando caminhos para uma libertação das discriminações imprimidas a essa parcela populacional. Alex Ratts e Flávia Rios, ambos importantes pesquisadores, também dedicaram parte de suas produções a Lélia Gonzalez, apontando os feitos da pensadora e resgatando seus escritos.
Assim como Barreto aponta e como foi pontuado acima, Lélia Gonzalez é um marco em nossa produção acadêmica, principalmente no que tange a formação do pensamento social brasileiro. Apesar da grandeza de sua obra e de toda sua influência política, ao longo dos anos suas produções foram sendo esquecidas, contudo isso não impede nem impediu a autora de ser uma das maiores intelectuais brasileiras. Gonzalez possui grande amplitude acadêmica nos dias atuais, sendo retomada para a escrita e formulação de novas produções acerca da formação social e política de nosso país.
Os escritos e pensamentos de Lélia Gonzalez deixam um marco em nossa produção e na atividade política direcionada ao fim de discriminações e no traçado para uma nova construção do brasileiro e do negro no Brasil. Assim, consideramos que Gonzalez, por toda sua grandeza política e acadêmica, faz parte do pensamento clássico brasileiro.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos