O engenheiro fluminense Vicente Licínio Cardoso é conhecido como autor da tese de que seria o Rio São Francisco o fator da unidade nacional. Aqui pretende-se refletir nas seguintes questões: como Cardoso construiu em seus textos a tese do rio da unidade? Em quais materiais, em termos documentais e historiográficos, ele sustenta sua tese? Qual a memória da nação que pode ser lida nos seus textos? A hipótese é a seguinte: a tese de rio da unidade de Vicente Cardoso foi um exemplo do uso público da memória na medida em que o autor construiu, com base em citações e autores da historiografia brasileira, uma retórica na qual o passado justificava ações para o presente. Segundo ele, o São Francisco, enquanto tablado geográfico formidável, exerceu um papel decisivo na manutenção da unidade territorial do Império brasileiro quando este foi ameaçado por forças separatistas do federalismo insulado em províncias do Brasil. O prestígio de Pedro II e o braço de Caxias, afirmou o escritor, não teriam sido capazes de conservar a unidade do país sem o fator geográfico exercido pelo rio. Comparando à experiência de independência nas nações hispano-americanas, Cardoso ressalta que o Brasil possuía o São Francisco como elemento de unidade geográfica, enquanto nos demais países da América do Sul a geografia condicionava o oposto. Trata-se de uma argumentação de caráter político e territorial. A unidade conservada pela monarquia, graças ao rio, conforme ele, era a unidade política do território. Para justificar sua tese, Cardoso se baseou em Euclides da Cunha, autor em franco processo de canonização nas décadas de 1920 e 1930. Para isso, todavia, Cardoso alterou o significado do São Francisco como fator de unidade, conforme escrita pelo autor de Os sertões. Na obra sobre Canudos, havia a afirmativa que na região do rio se formara a unidade da nacionalidade, no sentido racial. Cardoso modificou a citação de Euclides e substituiu “nacionalidade” por “unidade política”. Cardoso também citou João Capistrano de Abreu, que chamou o São Francisco de “condensador de gentes”. Mas convenientemente esquece que o historiador cearense atribuía papel importante para o “nó do Brasil” para a articulação de redes fluviais de sul a norte do país, não conferindo destaque a nenhum vale. Outro autor usado por Cardoso foi João Ribeiro, citado em Os Sertões, e retomado por Cardoso como historiador que percebeu o papel histórico-geográfico do São Francisco na história do Brasil. Além de se deter nesses três, Cardoso faz menção a escritores como Teodoro Sampaio, Eschwege, Karl Kraus, Guilherme Halfeld, Milnor Roberts, Saint-Hilaire, Inácio Acioli Cerqueira da Silva, Borges de Barros, R. Southney, Diogo de Vasconcelos, Orville Derby, Spix e Martius, George Gardner, Richard Burton, Placido Amarante, Saboia, Sousa Bandeira, Elpidio de Mesquita, Octavio Mesquita, Afonso Costa, Pearse, Adolpho Lutz, Belisário Penna e Elysée Reclus. Mas também ressalta que outros conservaram o Rio São Francisco no esquecimento citando como exemplo Rocha Pombo, Calogeras, Basílio de Magalhães, Pereira da Silva, Varnhagen, Melo Moraes e Joaquim Nabuco. Por consequência teriam ignorando o papel histórico-geográfico do rio na unidade do império, afirmou Cardoso. Dessa crítica não escapa sequer Euclides em seu texto Da independência à república que enfatiza as ideias, mas ignora o território. A miríade de autores citada por Cardoso produz no leitor o efeito de que ele vasculhou extensivamente no pensamento brasileiro pistas sobre o papel do São Francisco na história. À partir dessa revisão, todavia, Cardoso conclui que o São Francisco era “rio sem história”, pois não havia narrativa sobre ele, faltavam documentos seriais, faltava uma história dos missionários, da pecuária, mal se começava a escrever a história das bandeiras em São Paulo e não se conheciam muitos aspectos pormenores da história do vale. Embora os textos de Cardoso não careçam de aspectos historiográficos, não são completamente desinteressados, em que pese sua filiação ao positivismo de Auguste Comte anunciado em vários momentos de sua obra e uma ênfase na neutralidade científica. Cardoso realiza denúncias de aspecto mais geral, criticando o abandono que a república fez com o rio, diferente do império que o descobrira e estudara. Ele critica obras de orçamento astronômico como a ferrovia Pirapora-Belém quando muito mais barato seria regularizar a navegabilidade do São Francisco, cujos vapores são do tempo da monarquia. O engenheiro constrói uma memória, ou para fazer jus à sua estratégia retórica, recupera do esquecimento uma lembrança, para justificar ações públicas de investimento na navegação do São Francisco. Um passado de serviços ao país prestados “pelo” Rio deveria ser recompensado com investimentos, não com abandono e obliteração. Cardoso criou um padrão para o discurso sobre o São Francisco nas décadas seguintes, quando o papel do rio no passado da nação justificava os investimentos no presente e futuro, em que pese as diferenças ideológicas do contexto pós-crise de 1929. A inovação consistia em que os naturalistas e engenheiros do século XIX enfatizavam os aspectos naturais para justificar investimentos na regularização do rio, diferente de Cardoso, que agora acrescenta elementos históricos à justificativa. Cardoso defendia obras de regularização da navegabilidade do São Francisco, de modo coerente com o liberalismo econômico no qual o Estado era a mão invisível que viabilizava as comunicações para possibilitar que o mercado fizesse seu papel de civilização e progresso. A metodologia utilizada consistiu na leitura e fichamento da obra do autor, de modo a perceber conexões enunciadas ou subjacentes nos textos sobre o São Francisco, bem como na checagem do contexto de origem das citações realizadas, na tentativa de perceber como elas foram descontextualizadas e recontextualizadas na leitura-escrita de Cardoso e qual ganho de sentido houve nessa operação. Para operacionalizar a metodologia foram usados os conceitos de consenso de pesquisa e geografia imaginária desenvolvidos por Edward Said em Orientalismo, como forma de perceber como determinadas teses se estabelecem como consenso a partir de processos de sedimentação, citação, seleção, adição e esquecimento de autores, obras e citações. Também foram usados os conceitos de acréscimo de mais-valor de sentido no ato de interpretação de Paul Ricoeur em Le conflit des interpretátions e as discussões sobre interpretação de Johann Michel em Homo interpretans. As discussões sobre uso público da memória são tributárias de Luciana de Castro Soutelo em A memória pública do passado recente nas sociedades ibéricas.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos