Já disse um historiador latino-americanista - Richard Morse, em texto intitulado "Economia manchesteriana e sociologia paulista" (In: MORSE, Richard. A volta de McLuhanaíma: cinco estudos solenes e uma brincadeira séria. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 133-160) - que o trabalho dos poetas modernistas da década de 1920 fez-se de modo a fertilizar o terreno paulistano onde, uma década depois, floresceria uma imaginação sociológica. Passada ainda mais uma década, nesse terreno em florescência é que Darcy Ribeiro daria os primeiros passos relevantes à inscrição de seu nome no rol de uma possível intelligentsia brasileira.
Pouco se poderia compreender quanto à formação de Darcy Ribeiro, em sentido amplo, sem um exame de sua formação superior. Essa formação se funde e confunde com a institucionalização acadêmica das ciências sociais em São Paulo, nas décadas de 1930 e 1940 e, consecutivamente, em outras cidades do Brasil. “Pertenço à primeira geração de cientistas sociais brasileiros profissionalizados e com formação universitária específica”, afirmava Ribeiro, com frequência, sobremaneira em seus últimos anos de vida. Quiçá desejasse exalçar assim um recorte da própria trajetória, significativo para legitimar suas posições e projetos políticos, como senador; ou quisesse, enquanto intelectual, prover de amparo epistêmico às teses defendidas em O Povo Brasileiro, que estava vindo à luz naqueles derradeiros anos, fato é que Ribeiro rememorava um contexto que envolvera preteritamente a si, como a outros pensadores formados na década de 1940 e que, como ele, viriam a ter notoriedade na cena intelectual brasileira nos anos subsequentes.
Foram contemporâneos de Darcy Ribeiro, formando-se em Ciências Sociais entre a Escola Livre de Sociologia e Política e a Universidade de São Paulo, Oracy Nogueira (1917-1996), Antonio Cândido (1918-2017) e Florestan Fernandes (1920-1995). Nogueira notabilizou-se por seus estudos sobre racismo, criando uma distinção entre “preconceito racial de marca” e “preconceito racial de origem”, característicos desse fenômeno no Brasil e nos Estados Unidos, respectivamente. Cândido, que posteriormente se destacaria no campo da crítica literária, tem por mais conhecido trabalho sociológico o livro Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, publicado em 1964. Já Fernandes, que compôs extensa e reconhecida obra, será trazido à baila outras vezes no curso deste trabalho, devido às interlocuções com Ribeiro.
Tal evocação de profissionalização tem por referentes a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) de São Paulo, fundada em 1933, e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), criada no ano seguinte. A partir daí, a sociologia, que já adentrava faculdades e outros espaços de debate e produção intelectual desde o século XIX, adquiriria condição autônoma de curso superior.
Por força do estímulo de Donald Pierson, então professor da ELSP, à formação em ciências sociais, deflagrou-se o deslocamento de Darcy Ribeiro de Minas Gerais a São Paulo. Contudo, mesmo que tivesse a Escola Livre de Sociologia e Política por fulcro, entre 1944 e 1946, não apenas ao redor dela orbitaria sua vida ao largo daquele triênio paulistano. O mergulho na competência científica ofertada pela Escola se fez acompanhar da imposição de uma carga de leituras que extrapassava a bibliografia das disciplinas de seu curso. Desta carga decorreria uma “descoberta” do Brasil pelo então estudante. Eis um recorte peculiar de sua formação. Esses livros e seus respectivos autores não eram conteúdo obrigatório daquele curso de ciências sociais, passando ao largo das leituras exigidas dos alunos da ELSP. Para o bolsista Darcy Ribeiro, diversamente, converteram-se em “matéria concreta” para fomentar uma “descoberta” do Brasil. Compreendendo literatura e ensaísmo, os textos remontavam à intelectualidade brasileira situada entre os séculos XIX e XX: Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Paulo Prado, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, dentre muitos.
Portanto, a “descoberta” do Brasil se fez pelo conhecimento de um extenso conjunto de discursos sobre o país. Nos moldes desse conjunto se faria sua produção intelectual: voltada à procura da identidade nacional, para isso lançando mão da literatura, fazendo-a coexistir com teorias sociais ou mesmo tomando seu lugar.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos