As pesquisas na área do Pensamento Social Brasileiro podem utilizar as obras literárias como recurso metodológico de apreensão da realidade ou como mecanismo para remontá-la. O presente texto parte do seguinte problema de pesquisa: Por que estudar cordel na área de Pensamento Social Brasileiro? É válido pensar que a literatura popular também pode ser tratado como documento (CELLARD, 2008) porém até que ponto este documento é um reflexo da realidade ou é uma construção de realidades?
Mas afinal o que é cordel? De acordo com Haurélio (2007) “a poesia popular impressa é herdeira do romanceiro tradicional, da literatura oral (em especial dos contos populares, com predominância dos contos de encantamento)” (Haurélio, 2007, p. 15). Para o autor a narrativa popular, o cordel, está alinhado com as narrativas oralizadas, isto associado a um dos recurso muito usado pelo cordelista (autor do texto de cordel) que é a argumentação melódica (LIAKOPOULOS, 2002).
Considerando um universo de leitores analfabetos ou semialfabetizados, a melodia aponta para um recurso que facilita a partilha do pensamento, da história, contribuindo significativamente para a construção de uma opinião sobre determinado assunto ou fenômeno tratado na narrativa. Todavia o processo imaginativo não pode ser descartado pelo pesquisador na utilização da obra literária como fonte de dados. Avança-se na resposta, sobre o que é cordel, agora no que tange a sua formatação, para isso Matos (2010) aponta:
A prática poética do autor de cordel, que é ao mesmo tempo oral e escrita, incorpora princípios de um conhecimento poético tradicional, com a métrica e a rima obedecendo a padrões já bastante conhecidos: sextilhas, seguindo o esquema ABCBDB (2º, 4º e 6º versos rimados), ou décimas, no esquema ABBAACCDDC (1º, 4º, 5º versos rimados, além do 2º com o 3º; o 6º com 7º e o 10º; e o 8º com o 9º). Porém, mesmo dentro desses limites, o poeta popular faz suas narrativas fluírem mais livres e espontaneamente, sem mordaças ou espartilhos. (MATOS, 2010, p. 18)
Na passagem acima, Matos (2010) sinaliza uma convergência letra e voz sobre a literatura de cordel, então separações entre o texto escrito, cordel e a voz, repente, não nos ajudam a pensar a importância da produção poética popular no Nordeste brasileiro. Após esta dupla abordagem (histórica e formatação textual) na tentativa de uma definição de cordel, arrisco em dizer apoiado em Benjamin (1987) que a experiência narrativa do cordelista é oriunda da arte de contar história. Devido a isso, a cosmovisão dos leitores de cordel, tomo por alicerce os cordéis publicados até os anos 1930, leva-se em consideração ao texto e a sua performance. É válido mencionar que o primeiro registro de transmissão de rádio brasileiro ocorrerá em 1922, portanto pode-se entender o cordel como veículo de massa.
Apesar de Benjamin (1987) escrever a partir dos efeitos do pós Primeira Guerra Mundial e as suas consequências na vida humana, particularmente através da arte, na Europa. Seu pensamento nos fornece pistas para entender a narrativa de cordel no contexto da Primeira República do Brasil, no Nordeste. Este autor sinaliza que a criação artística leva-se em ponderação as noções de “natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, (...), surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo…” (BENJAMIN, 1987, p. 119).
O povo nordestino, do começo do século XX, talvez não soubesse o que acontecia em outras partes do Mundo, mas um movimento de descrédito no Estado, de batalha sangrenta com a fome, secas generalizadas, uma grave crise econômica, sanitária e poderes regionalizados através dos coronéis assolava a vida dos sertanejos (LEAL, 1948; FURTADO, 1972). Através deste cenário e do que Benjamin (1987) nos traz, o cordel, é portanto um texto com formalização e assim o cordelista é detentor de uma técnica criativa/escrita em que suas narrativas são frutos de suas experiências (o que está grafado no excerto como natureza).
As histórias contadas nos cordéis teriam também a importância de confortar as visões de mundo entre leitores e a mensagem/notícia narrada. Luyten (1992) define o cordelista do “cordel-jornal”, como aquele que “apreende um acontecimento com sua sensibilidade, empresta-lhe a perspectiva da sua cosmovisão e o retransmite numa linguagem popular, dentro do campo de referência dos seus leitores” (LUYTEN, 1992, p.49). Nesta configuração o cordel narra fatos, completamente diferente da narração do jornal, ao cordelista ele além de narrar, interpreta os fatos, opina sobre ele e "reflete e ajuda a formar a opinião pública ao redor” (op. cit., p. 49) dentro de uma escrita puramente parcial, na qual a ênfase da narrativa não é o fato, todavia as posições dos agentes, “o bonzinho” e o “vilão”.
A realidade não é única, seu entendimento deve ser múltiplo, contingencial e situacional, por tanto a pesquisa na área do Pensamento Social se apropria do texto ficcional do cordel para entender o contexto social, cultural e político de determinado período histórico levando se em consideração não apenas as representações mas também o processo imaginativo que percorre a subjetividade do autor, da mensagem e do receptor. Enfim, não se busca separar imaginação e representação no texto popular, e sim percebê-los como uma amálgama de construção de realidades.
Referências
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CELLARD, André. A análise documental. In: POUPART, Jean. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques teóricos e metodológicos. 3 ed. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2008.
FCBR – Fundação Casa de Rui Barbosa. Acervo de Cordel. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em<http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/acervo.html>. Acesso em 10 de setembro de 2015.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 11. ed. São Paulo: Nacional, 1972.
HAURÉLIO, Marco. A trajetória do Cordel no Brasil, em prosa e verso. In: Cultura Crí-ti-ca (Revista Cultural da APROPUC-SP) nº 8. Dossiê sobre Literatura de Cordel. São Paulo, 2007.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: 1948.
LIAKOPOULOS, M. Análise Argumentativa. In: BAUER, M. W; GASKELL (Orgs). Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som: um manual prático. 2ª Ed Petrópolis: Vozes, 2002.
LUYTEN, Joseph M. A notícia na literatura de cordel. São Paulo: Estação Liberdade,1992.
MATOS, Edilene Dias. Literatura de cordel: poética, corpo e voz. In: MENDES, Simone (org.). Cordel nas Gerais: Oralidade, Mídia e produção de sentido. Fortaleza: Expressão, 2010.
__________________. Literatura de Cordel: a escuta de uma voz poética. In: Cultura Crí-ti-ca (Revista Cultural da APROPUC-SP) nº 8. Dossiê sobre Literatura de Cordel. São Paulo, 2007.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos