É perceptível o crescimento cada vez mais expressivo da produção científica sobre gênero e feminismo no Brasil. Contribuições originais e profícuos debates têm se dado nas últimas décadas sobre o conceito de gênero, envoltos em profundas disputas teóricas e epistemológicas, bem como históricas e políticas. Conforme Saffioti (2004) reconhece, há uma miríade tão ampla de compreensões quanto a este conceito específico que, genericamente, um possível consenso acadêmico e feminista sobre ele pode-se reduzir tão somente a um elemento amplo e difuso, a saber: o de que, como categoria analítica, sublinharia “a construção social do masculino e do feminino”. No entanto, a situação era bem diferente em 1967, quando uma erudita professora de Ciências Sociais do interior do estado de São Paulo concluía sua tese de livre-docência, intitulada “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”, orientada pelo sociólogo Florestan Fernandes. De acordo com ela própria, tanto a publicação em território brasileiro de literatura estrangeira em gênero, quanto a elaboração nacional sobre esta temática e a teorização específica sobre as relações de gênero e a condição feminina no Brasil eram escassas (GONÇALVES, BRANCO, 2011; MÉNDEZ, 2010). Cabendo-se destacar que nem mesmo o conceito de ‘gênero’ estava difundido na teoria social no geral e na brasileira em particular e viria a ganhar importância nesse meio apenas nas próximas décadas (SAFFIOTI, 2005; HARAWAY, 2004). Heleieth Saffioti, portanto, viria a ser reconhecida nacionalmente e internacionalmente, entre outros fatores, por seu pioneirismo nos estudos sobre a condição da mulher e acerca das relações de gênero no Brasil (GONÇALVES, 2013; LOVATTO, 2018), elaborando com rigor teórico e metodológico um material que posteriormente seria reivindicado como parte dos primórdios da sistematização de uma teoria feminista brasileira. A própria Saffioti, porém, ofereceu resistência em adotar o conceito de “gênero”, o fazendo apenas posteriormente em sua trajetória intelectual e com grandes ressalvas, sempre colocando a necessidade de “complementá-lo” com o conceito de patriarcado (SAFFIOTI, 2004). No entanto, mesmo que a utilização nominal do conceito de gênero tenha acontecido apenas ulteriormente, a compreensão sobre a fundamentação histórico-social das relações entre homens e mulheres perpassa toda a obra da socióloga marxista (SAFFIOTI, 2013), com mudanças e permanências no que diz respeito a suas determinações mais particulares. Está evidente, portanto, que explicitar o significado de “gênero”, tendo em vista sua importância para descrição, entendimento e subversão de experiências e existências concretas, é uma tarefa fundamental para a qual indubitavelmente Saffioti contribuiu. Nesse sentido, este trabalho – como parte de um projeto de pesquisa mais amplo em desenvolvimento, que inclui pesquisa na modalidade PIBIC, com fomento do CNPq, busca apreender os traços mais essenciais da compreensão de Saffioti a respeito de “gênero”, manuseando suas principais elaborações teóricas a respeito do conceito e relacionando sua teorização com sua perspectiva metodológica central, o materialismo histórico. Trata-se de uma pesquisa teórica, que busca analisar um conjunto seleto e restrito de textos relevantes de Saffioti, em momentos distintos de seu desenvolvimento intelectual, e de algumas produções científicas acerca da obra da professora, empregando técnicas como a revisão bibliográfica. Será utilizado, primordialmente, um referencial teórico-metodológico marxista, para qual o conhecimento sempre expressa – embora não reflita mecanicamente – um dado contexto material, histórico-social (MARX, ENGELS, 2007) e que compreende teoria como a dinâmica contraditória da realidade concreta projetada idealmente (NETTO, 2011). Já a reflexão sobre gênero será inevitavelmente mediada pelas contribuições clássicas – como de Saffioti –, e mais recentes do feminismo-marxista, em especial a Teoria da Reprodução Social, onde as relações de gênero, assim como as de raça e classe, compõem parte fundamental, mas não autônoma, de um sistema unitário; a totalidade articulada e complexa de relações sociais que constitui o modo de produção capitalista (ARRUZZA, 2015; RUAS, 2019). A hipótese que sustentamos aponta para uma compreensão do conceito de gênero por parte de Saffioti como categoria histórica, para além de analítica (SAFFIOTI, 2004), identificando-o como uma “gramática sexual” que regula a totalidade das relações humanas de uma dada sociedade – portanto, bem mais amplo frente ao conceito de patriarcado, que implicaria, necessariamente, hierarquia e dominação–, sempre se preocupando em situá-lo materialmente, centralizando as formas particulares, históricas e transitórias de manifestação das relações de gênero de acordo com os modos de produção – “configurações concretas de vida” –, com diferentes processos históricos, tipos específicos de desenvolvimento capitalista, posições particulares na Divisão Internacional do Trabalho e relações com o racismo (GONÇALVES, 2013; SAFFIOTI, 2013; MOTTA, 2018).
Referências
ARRUZZA, Cinzia. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, primeiro semestre de 2015.
GONÇALVES, Renata; BRANCO, Carolina. Entrevista – Heleieth Saffioti por ela mesma: antecedentes de “A mulher na sociedade de classes”. Lutas Sociais, n. 27, São Paulo, 2011.
GONÇALVES, Renata. O pioneirismo de A mulher na sociedade de classes. In: SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
HARAWAY, Donna. Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu. Campinas, 2004, n. 22, pp. 201-246.
LOVATTO, Angélica. Heleieth Saffioti e o pionerismo nos estudos do feminismo no Brasil. Revista Novos Rumos. Instituto Astrojildo Pereira - Marília, 2018, v. 55, n.1.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉNDEZ, Natalia Pietra. SAFFIOTI, Heleieth. Entrevista. por Natalia Pietra Méndez. Decupagem. In: MÉTIS: história & cultura – v. 9, n. 18, p. 275-294, jul./dez. 2010.
MOTTA, Danielle C. Desvendando Heleieth Saffioti. Lutas Sociais. São Paulo, vol.22 n.40, p.149-160, jan./jun. 2018.
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método em Marx. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
RUAS, Rhaysa S. F. Contribuições contemporâneas da TRS: totalidade social e o debate sobre opressões. Marx e o Marxismo. Niterói, 2019, 109, v.7, n. 13, pp. 272-294.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero e patriarcado. In: Marcadas a Ferro. Violência contra as mulheres: uma visão interdisciplinar. Brasília: Presidência da República/ Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos