Graciliano Ramos leu o romance O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, tão logo foi publicado, em 1935, encantando-se pelo modo com que a obra conseguiu incorporar, em linguagem literária, a denúncia social de dramas que o proletariado vivia na cidade do Recife. De Alagoas, enviou uma carta a Rego prevendo que ele estaria “aí [no Rio] metido em dificuldades por causa da questão social” (RAMOS, 1991, p. 51). O significado da denúncia social contida em O moleque Ricardo parece, contudo, ter sido superestimado por alguns críticos que receberam o romance na época. Carlos Lacerda, até então comunista, escrevia para o diário A Manhã de 11 de agosto de 1935 um artigo com o sugestivo título Moleque Ricardo ou a revolução entrando na consciência, indicando o carácter de um romance proletário comprometido, de alguma forma, com projeto de uma revolução comunista no Brasil.
É verdade que o narrador de Moleque Ricardo colocou na boca e no imaginário de alguns personagens proletários as esperanças da revolução, que os mobilizava, muitas vezes de forma intuitiva e pouco organizada, em sindicatos e greves, e recheava a esperança popular com o espectro da “Rússia [que] é governada por operários de mãos calosas” (REGO, 2008c, p. 78). É possível que passagens como essa que endossa a revolução socialista tenham ganhado muita centralidade na análise de Carlos Lacerda e de outros intelectuais comunistas, fazendo-os crer em um compromisso de O moleque Ricardo com a estética do romance proletário. Mas aqui é essencial distinguir a fonia dos personagens da visão de mundo no romancista. Ou, como sugere Carine Dálmas (2013, p. 230), essa interpretação do romance pode ter sido fruto de intenção deliberada de intelectuais comunistas de absorver os romances mais críticos da época, independentemente da orientação do autor, para promover o programa revolucionário.
Na edição do Diário de Pernambuco de 28 de junho de 1936, aproximadamente um ano após a publicação de Moleque Ricardo, Raymundo Magalhaes Júnior escrevia um artigo com título chamativo: Moleque Ricardo não é comunista! “Agora andam dizendo por ahi que Moleque Ricardo é um livro tendencioso”, dizia Magalhães Júnior (1936, p. 1) na tentativa de retirar o rótulo bolchevique que havia sido dado ao romance e a seu autor. “O sr. José Lins do Rego tem, precisamente, essa virtude: a de não dar opinião pessoal. Seus personagens vivem, attrictam-se, chocam-se, mas o autor nunca intervém, nunca se manifesta, nem toma partido” (MAGALHÃES JÚNIOR, 1936, p. 1). Talvez tenha sido aqui que nasceu a tese um tanto quanto ingênua que enxerga uma suposta neutralidade do romancista nas denúncias sociais: “José Lins do Rego, o que fez no seu romance, foi a simples constatação de aspectos tragicos da miseria urbana, do proletariado das cidades” (MAGALHÃES JÚNIOR, 1936, p. 1). Essa explicação sobre o significado da denúncia social na obra de José Lins do Rego se manteria sólida na crítica literária com o passar dos anos. Virgínius da Gama e Melo (1991, p. 285) falaria, em 1956, que Rego se afastava de “partidarismos”. Em 1966, Manuel Cavalcanti Proença (1984, p. 66) dizia que “José Lins do Rego não foi escritor engajado”. Não parece, porém, ser por aí. Talvez Rego apenas não fosse engajado com o comunismo.
Sem a mesma dose de otimismo de Carlos Lacerda, outros intelectuais comunistas foram mais céticos ao lerem Moleque Ricardo. Edison Carneiro (1935, p. 3), por exemplo, chamava o romance de Rego de pequeno-burguês. Embora Carneiro não tenha problematizado a fundo o que seria o conteúdo pequeno burguês de Moleque Ricardo, a sua escolha por utilizar uma categoria tão nativa na tradição comunista, como é a visão pequeno-burguesa, nos permite extrair algumas conclusões. Concepções pequeno-burguesas se relacionam a projetos de mudanças sociais se limitam a reivindicar reformas do capitalismo, sem a sua superação revolucionária. Nos projetos pequeno-burgueses, o discurso do direito se torna central, sendo ele um instrumento por meio do qual o capitalismo seria domado, reformado e humanizado. Um conteúdo de classe pequeno-burguês na obra Moleque Ricardo, assim, significaria que aquelas denúncias sociais narradas seriam a defesa de lutas por direitos sociais, por educação, moradia, trabalho, assistência e previdência sociais dignas, mas dentro da produção capitalista.
Mas, afinal, a denúncia social de Moleque Ricardo é uma luta por direitos, um manifesto revolucionário, um discurso neutro das condições de vida na cidade, ou o quê? Essas várias interpretações com que o romance foi recebido pela crítica da época devem ser entendidas em seu contexto. A partir de 1933, eclodiram no Brasil muitos romances urbanos críticos às condições de vida do proletariado (BUENO, 2015, p. 159 ss.). A nova realidade de um país em processo de urbanização e industrialização era incorporada criticamente à literatura. Suor e Jubiabá, de Jorge Amado, de fato, se orientavam pela estética do romance proletário. Mas não se pode dizer isso sobre as denúncias sociais presentes em Os Corumbás, de Amando Fontes. Calunga, de Jorge de Lima, tinha fortes influências da doutrina social católica: sem qualquer perspectiva revolucionária, portanto. Embora a denúncia social fosse uma constante nesses romances urbanos, o seu significado variava.
Para entender o significado da crítica social em Moleque Ricardo, é preciso seguir dois passos metodológicos: 1) Mergulhar na biografia de Rego e perceber como seu amigo íntimo Gilberto Freyre lhe influenciou profundamente. A denúncia de Moleque Ricardo se aproxima daquilo que o marxismo chamou de socialismo feudal – aqui é só uma aproximação, não quero defender tese de que o Brasil teve um passado feudal, embora Freyre assim considerasse. Moleque Ricardo, na esteira do pensamento de Freyre, têm tom passadista; que entendia as condições de vida do proletário no capitalismo como sendo piores que as dos escravos nos engenhos de açúcar. 2) Para identificar essa influência de Freyre em Moleque Ricardo, é preciso analisá-la em conjunto com outras obras do chamado ciclo da cana-de-açúcar de Rego: Menino de engenho, Doidinho, Banguê e Usina, para mostrar o saudosismo de Rego frente à decadência econômica dos mundos dos engenhos.
BUENO, L. Uma história do Romance de 30. SP: USP, 2015.
CARNEIRO, E. A revolução no romance brasileiro. A Manhã., n. 141, 6 out. 1935.
DALMÁS, C. Frentismo cultural dos comunistas no Brasil e no Chile. Projeto História, n. 47, 2013.
GAMA E MELO, V. O romance político do Recife. In: COUTINHO, E. F.; CASTRO, Â. B. José Lins do Rego. PB: Funesc, 1991.
LACERDA, C. L. Moleque Ricardo ou a revolução entrando na consciência. A Manhã, n. 93, 11 ago. 1935.
MAGALHÃES JR., R. Moleque Ricardo não é comunista. Diário de Pernambuco. n. 151, 28 jun. 1936.
RAMOS, G. Zelins. In: COUTINHO, E. F.; CASTRO, Â. B. José Lins do Rego. PB: Funesc, 1991.
REGO, J. L. Moleque Ricardo: RJ: JO, 2008.
PROENÇA, M. C. O negro tinha caráter como o diabo! In: REGO...
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
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