No século XIX, no processo de formação das repúblicas na América Latina, os intelectuais procuravam traçar projetos para a construção nacional. Nessa construção, o processo de relações e diferenças étnicas passou a ser tratado não só como um assunto política e ideológica, mas também como uma questão científica. Desenvolveram-se teorias e propostas para a miscigenação e para a promoção da imigração, refletida profundamente em alguns tópicos dos estudos raciais realizados nesse período. É nesse contexto que as questões sobre raça, degenerescência e criminalidade se tornaram assuntos concretos e pertinentes. No Brasil a formação da República é marcada por novos paradigmas, entre eles: a construção da chamada identidade nacional. Assim, seus intelectuais tentaram forjar, desvendar e qualificar essa identidade. Em meio a esses paradigmas é que toma grande importância os estudos entretecidos pelo médico e antropólogo maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). A influência de Nina Rodrigues se fez presente e se concretiza na formação de uma “Escola”, na qual encontravam-se todos aqueles que compartilhavam a teoria de que o conhecimento do corpo humano e das formas que o constituem eram fundamentais para entender as raças humanas e suas diferenças – frenologia. Tais teorias foram utilizadas para tentar demonstrar a inferioridade do povo e estabelecer argumentos para explicar o dito atraso da nação, bem como ditar propostas para a cura de um país “enfermo” e “doente”. Politicamente, tornou-se necessário definir os critérios de inclusão-exclusão social ao estatuto de cidadão. No Brasil, o início do século XX coincide com o momento crucial do debate entre a possibilidade da participação das massas na vida política e a reafirmação de sua exclusão, além da crescente urbanização que deixava transparecer um considerável aumento e concentração de populações – anteriormente menos visíveis – que deveriam ser conhecidas e controladas. Dessa forma as teorias raciais que se estabeleciam a partir de uma antropologia profissional oriundas da Europa do século XIX tiveram grande guarida na América Latina. Era o momento áureo do cientificismo europeu onde os homens de ciência buscavam responder às indagações sobre as diferenças entre os seres humanos. Nina Rodrigues foi um dos maiores expoentes dessas teorias, particularmente, o darwinismo social. Por ele traçou uma análise das “raças” humanas para determinar a degenerescência do negro, as diferenças raciais como critério na implementação da penalidade (responsabilidade penal) e o papel dos indivíduos caracterizados como inferiores na afluência social. Foi um personagem carismático e um ardoroso defensor da medicina legal no Brasil, tornando-se, em meados de 1890, o mais renomado profissional nessa área. Forma-se em Medicina na Bahia em 1882, doutorando-se nessa mesma área em 1888 no Rio de Janeiro. Sua participação em pesquisas antropológicas passou a ser constante, desenvolvendo vários trabalhos sobre a cultura negra, principalmente sobre o fetichismo religioso. Ao mesmo tempo através de suas pesquisas no âmbito da medicina legal concretizou suas reflexões sobre a relação entre “raça” e criminalidade. Foi reconhecido pelos mais famosos intelectuais internacionais do fim do século XIX e início do século XX. Entre eles, o Dr. Cesare Lombroso (1836-1909), médico italiano pioneiro nos estudos de frenologia, que dizia ser Nina Rodrigues seu discípulo mais importante no Novo Mundo. Influenciado pelas teorias Lombrosianas, propagou no Brasil as estigmatizações do corpo e da cor (negros, mestiços e mulatos), onde as “raças” eram classificadas conforme o caráter ou a constituição biotipológica. Nina Rodrigues fez da medicina legal o suporte básico para a análise da degenerescência do mestiço e do negro, pressupondo tendências de ambos para o crime. Associava a questão racial ao quadro mais abrangente do progresso da humanidade e estabeleceu a dicotomia entre as raças em “superiores” e “inferiores”. Acreditava na inferioridade do negro e na degenerescência do mestiço, propondo que as “raças superiores”, por serem mais evoluídas, guiassem as fases pelas quais passariam a consciência do direito e do dever das “raças inferiores”. No seu pensamento a medicina se vinculava à antropologia e ambas centravam em torno de si os estudos de direito penal, do fetichismo e da criminalidade. Os trabalhos de antropometria e etnografia concretizaram essa ligação. Assim, o que se pretende neste artigo é ressaltar a importância de Nina Rodrigues na construção do pensamento social brasileiro, analisando a repercussão de suas ideias quando da institucionalização da medicina legal e do direito, muito vinculadas a uma antropologia em formação e que permeava os estudos sobre raça e criminalidade. Compreender tais ideias a partir da argumentação de Nina Rodrigues pode nos permitir entrelaçar mais de perto os caminhos pelos quais as teorias raciais foram introduzidas e desenvolvidas não só no Brasil, mais na América Latina. Ao analisar as ideias tecidas por Nina Rodrigues, em torno das relações raciais e, principalmente, ao entender a relação que faziam entre raça e direito penal, procuramos operar uma reflexão localizada e temporal na formação do preconceito na sociedade brasileira. Para tanto, não procuro apenas circunscrever o pensamento isolado de Nina Rodrigues, mas demonstrar a profundidade de sua atuação política e sua influência intelectual na América Latina de finais do século XIX e início do XX. Nesse sentido, começo meu percurso analítico, explanando acerca de alguns aspectos relacionados com processo de construção do pensamento social brasileiro entre os anos de 1890 e 1910. Mais precisamente sobre o pensamento racial que se constituía no corpus dessa construção. Após situar Nina Rodrigues, no conjunto desse pensamento, busco analisar os principais temas nos estudos sobre raça feitos por ele. Temas que estão debruçadas sobre as prováveis capacidades e tendências das raças tidas como “inferiores” de praticarem atos “anti-sociais”. Enfatizo nesse conjunto a antropológica criminal, advinda das teorias de Cesare Lombroso – que procurava nas estigmatizações do corpo algo que pudesse caracteriza os “delinqüentes” e os “seres degenerados” – demonstrando o quanto essa vertente da criminologia moderna influenciou Nina Rodrigues, principalmente no que se refere ao empirismo científico. Em seguida, discorro sobre as concepções de evolução, mestiçagem e degenerescência racial, mostrando em quais aspectos ele se apoiou para determinar a incapacidade de participação das raças tidas como “inferiores” na vida social do Brasil.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos