Este trabalho investiga se a democracia racial, tal qual veiculada, na primeira metade do século XX, entre intelectuais brasileiros ligados à academia e intelectuais ligados aos movimentos negros, constituiu uma ideologia, uma utopia ou um projeto de planificação democrática da sociedade. Partindo da sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1962; 1986), distinguimos as noções de ideologia, utopia e planificação democrática tanto em sua dimensão conceitual, quanto em sua referência ao lugar da estrutura social a partir do qual fala os diferentes atores/autores. Nosso recorte de pesquisa é feito a partir dos textos dos sociólogos Gilberto Freyre e Alberto Guerreiro Ramos ligados ao tema em questão, a partir deles procuramos compreender o sentido e a função social do conceito de democracia racial para os dois autores. Num primeiro momento, apresentamos o contexto nacional e internacional, bem como as redes entre intelectuais brasileiros e norte-americanos, a partir dos quais o conceito parece ter surgido pela primeira vez. Apesar do termo “democracia racial” só ter sido usado nos anos de 1940, primeiro por Roger Bastide, depois por outros intelectuais como, por exemplo, Freyre, o conceito já estava presente na intelectualidade brasileira desde os anos de 1930. Escolhemos o período mencionado por ser um momento onde os intelectuais negros do Teatro Experimental do Negro (TEN) disputavam o conceito de democracia racial com os intelectuais brancos ligados à academia. Concluímos que nos textos de Freyre a democracia racial pode ser classificada como uma ideologia na medida em que ela interpreta o presente a partir do passado, destacando o papel do colonizador português como promotor de uma certa harmonia social através da mestiçagem cultural e biológica. Tal ideologia teria uma função conservadora uma vez que estava ligada à visão de mundo de uma classe em declínio histórico (as oligarquias rurais), uma classe que perdeu as rédeas do processo histórico em detrimento de um governo centralizado em alianças com a burguesia industrial e as classes médias urbanas, sobretudo, a elite do funcionalismo público. Já nos textos de Ramos, a democracia racial aparece como um misto de utopia e de projeto de planificação. De um lado, a democracia racial para esse autor se volta para o futuro, isto é, para a integração justa da população negra dentro de uma sociedade competitiva em surgimento e para a constituição de uma identidade negra para o Brasil. De outro lado, na medida em que a democracia racial foi associada, por Guerreiro Ramos e pelos membros do TEN, a um projeto amplo de inclusão social por meio da educação, com várias medidas concretas sendo postas em execução como, por exemplo, projetos de alfabetização, de acesso à cultura erudita, de valorização das culturas tradicionais, de terapias de grupo para combater os efeitos psicológicos do racismo, de valorização estética das pessoas negras, da promoção de concursos artísticos valorizando o fenótipo do povo negro, de criação de veículos de comunicação, entre outros, esse conceito apareceu com uma função planificadora da sociedade, vinda de setores em ascensão de uma elite intelectual negra que buscava substituir as antigas elites agrárias no desenvolvimento de um projeto político mais justo de integração da população negra na sociedade competitiva em surgimento. Consequentemente, ainda que seja possível encontrar em Freyre e em Ramos uma defesa da democracia racial, as formulações guardam distinções proeminentes que podem ser explicadas, dentre outras vias, pelo instrumental sociológico mannheiniano.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos