Escravidão e interpretação do Brasil em dois contos de Machado de Assis: O caso da vara e Pai contra mãe

  • Autor
  • Bruno Borja
  • Co-autores
  • Wellington Silva
  • Resumo
  • A fortuna crítica de Machado de Assis se apresenta tão larga quanto seu prestígio na cultura nacional. No século 20, a obra do escritor foi abraçada pelas mais diversas interpretações, por vezes antagônicas. Nesse campo de disputas, nos deteremos num plano polêmico da obra machadiana com vistas a identificar o escritor como um dos intérpretes da formação social brasileira. O objetivo do artigo é apresentar, nos meandros da ficção de Machado, uma interpretação da escravidão no Brasil. Para tanto, abordaremos dois contos clássicos: O caso da vara (1891) e Pai contra mãe (1906).

    Para situar o escritor num campo de interpretações realistas do Brasil, recorremos a Astrojildo Pereira, em Romancista do Segundo Reinado, de 1939.   O autor nos indica um caminho profícuo, pois aponta a conexão íntima entre o trabalho artístico e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Assim, busca relacionar dados histórico-sociais da época do Segundo Reinado (os casos de amor e conveniência; a escravidão e a sua permanência em práticas pós-abolição; a proclamação da República), a observações formais de contos e romances, sobre os tipos de personagens, enquadramentos narrativos e pontos de vista do narrador.

    Com sobriedade, Astrojildo atesta que a relação de Machado com seu tempo estava determinada por sua personalidade, pelas condições do quadro histórico nacional, assim como por suas crenças políticas. Ressalte-se o comentário acerca do romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), em que o memorialista tenta justificar que as origens das práticas odiosas de venda e castigo de escravizados, por parte de seu cunhado, são “puro efeito de relações sociais” (mudam-se as formas, mudam-se os conteúdos). Os argumentos da elite nacional, antes e pós-abolição, representados por Machado comprovam, para Astrojildo, sua consciência crítica e histórica. Sendo a escravidão parte da estrutura do sistema social do Segundo Reinado, o escritor a aborda como conjunto totalizante de práticas sociais.

    Outro autor que filia Machado no campo realista é Nelson Werneck Sodré. Em História da Literatura Brasileira, aborda a temática das interpretações do Brasil, apresentando um panorama de autores de fins do século 19, a fim de sinalizar o espectro intelectual. Sodré argumenta pela tendência à representação urbana na ficção brasileira, fazendo da cidade o centro dinâmico das transformações, e não mais o campo. Assim, a cidade passa a ser o lócus para a captação literária das modificações estruturais do país. 

    O tema da escravidão é abordado por Sodré, confrontando posições de um suposto Machado absenteísta. A inserção do escritor no debate abolicionista se dá, por meio da especificidade artística e do seu trabalho formal. É possível argumentar que Sodré, ao ler a obra machadiana, nos oferece uma visão totalizante dos projetos literários em disputa (consciência nacional x elaboração linguístico-formal). Vida e obra de Machado estão imbricadas na análise, e ambas inseridas na quadra histórica do Segundo Reinado, quando elementos coloniais estão em decadência e se afirmam os fundamentos da nação.

    É correto concluir que a fabulação artística de Machado retira as melhores energias do seu processo social, que o artista capta com sensibilidade porque sua obra madura traz a marca do realismo. Acerca disso, vemos a influência de Lukács, na formulação de Sodré, para quem a mais profunda reflexão sobre a essência do processo social brasileiro se encontra na fase realista do autor.

    O aprofundamento da concepção realista na literatura de Machado de Assis demanda considerar a particularidade nacional, descortinando uma interpretação do Brasil. Isso nos leva à especificidade das relações materiais que fundamentam a formação social brasileira, cabendo comentar como a forma literária machadiana se configura na formação social do Brasil escravocrata do Segundo Reinado. Assim compreendendo, sustentamos que o realismo de Machado se mostra como um instrumento de interpretação da realidade brasileira, cuja base material se calcava na força de trabalho escravizada, mesclada com o liberalismo importado da Europa.

    É bem consolidada a distinção da obra machadiana, com sua adesão ao realismo a partir da publicação do romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e dos contos de Papéis avulsos (1882). Há um salto qualitativo rumo aos experimentos realistas, cuja criação de personagens e situações ficcionais típicas permite à sensibilidade estética captar a mudança dos tempos. Ao traçar um panorama do Império decadente e da transição ao capitalismo no Brasil, Machado alcança uma “vitória do realismo”, nos termos de Lukács, retratando a sociedade burguesa em seu momento de consolidação.

    Nos romances e contos, encontramos elementos fundamentais para formular uma interpretação do Brasil, tal como no campo das ciências humanas e sociais viriam a ser produzidas. Na peculiaridade estética, que cabe à literatura, Machado aborda temas centrais da sociedade brasileira: o patriarcalismo e o patrimonialismo da aristocracia decadente; o privilégio de classe e a possibilidade de ascensão social de pessoas pobres livres na ordem escravocrata; o clientelismo e a necessidade do favor das classes dominantes como imposição às classes subalternas. No entanto, Machado traz tais temas com uma característica ficcional particular, usa o enredo da ordem familiar para expor, como pano de fundo totalizante, a ordem social escravista. A proposta do artigo é analisar dois de seus contos realistas mais marcantes sobre a escravidão e suas contradições na sociedade brasileira: O caso da vara (1891) e Pai contra mãe (1906).

    Em O caso da vara, temos um suposto conflito principal entre o seminarista Damião e seu pai. No entanto, o desenrolar da história nos coloca um conflito mais profundo, um real conflito de classes, entre Sinhá Rita e a escrava Lucrécia. Tal fato se evidencia já no título do conto, no qual a vara se refere ao instrumento de punição da escrava pela sinhá. O desenlace da situação ficcional expõe também a condição de classe de Damião, que apesar da simpatia por Lucrécia, silencia frente aos desmandos de Sinhá Rita, numa contundente vitória do interesse material sobre a virtude moral.

    Já o conto Pai contra mãe, traz em seu título uma dubiedade quanto ao conflito principal. Num primeiro momento, supõe-se um conflito familiar entre o pai, Cândido Neves, e a mãe, Clara, sobre a possibilidade de nascimento de seu filho. Porém, o enredo evolui a fim de apresentar um conflito estrutural da sociedade brasileira do Segundo Reinado: um conflito de classes entre Cândido – homem pobre livre cujo ofício é caçar escravos fugidos – e Arminda – escrava fugida, grávida e prestes a tornar-se mãe. Assim, emerge o conflito principal, pai livre pobre contra outra mãe escravizada. Diante das promessas de recompensa da classe dominante de proprietários de escravos, o homem pobre livre sucumbe, em mais uma vitória cruel do interesse material sobre a virtude moral.

  • Palavras-chave
  • Machado de Assis, Interpretação do Brasil, Escravidão
  • Área Temática
  • AT3 - Arte, literatura e sociedade
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O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.

 

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