1. Objeto e objetivos
Este trabalho tem como propósito mapear os aspectos dos escritos do diplomata e sociólogo José Guilherme Merquior (1941-1991) que o aproximam de certo tipo de pessimismo cultural, no sentido de uma leitura da modernidade que tende à desconfiança do progresso na cultura e na moral e à constatação de uma “dinâmica histórica negativa” (Joshua foa Dienstag). Embora esse Kulturpessimismus apareça em outras obras do autor nas décadas de 1960 e 70, a ênfase desta análise será em Saudades do Carnaval: introdução à crise da cultura (1972).
2. Introdução
O pensamento social de Merquior costuma ser associado com o ideário liberal que permeia sua produção escrita na década de 80, como A Natureza do Processo (1982) e a obra póstuma O Liberalismo: Antigo e Moderno (1991). Nesta fase predomina uma argumentação não só em prol do liberalismo social (o qual combinaria a valorização da liberdade política e econômica com o reconhecimento do papel do Estado no combate às desigualdades sociais), mas também de uma cosmovisão neoiluminista, que exalta o progresso material e intelectual da modernidade, com ênfase no salto civilizacional que houve entre os séculos XIX e XX com o advento do industrialismo.
Curiosamente, um dos principais alvos da perspectiva liberal neoiluminista do Merquior “tardio” é justamente o pessimismo cultural, considerado um dos principais problemas teóricos, por exemplo, da Escola de Frankfurt, na medida em que autores como Marcuse (1898-1979) e Adorno (1903-1969) tenderiam uma visão apocalíptica da sociedade moderna e industrial, com uma desconfiança romântica da ciência e da tecnologia. Para o autor de O Marxismo Ocidental (1986), “uma verdadeira compreensão da história moderna não justifica a fúria e o desespero dos inimigos da modernidade”.
As obras das décadas de 60 e 70 de Merquior, por outro lado, revelam uma crítica da cultura moderna que em vários momentos converge com a interpretação dos frankfurtianos. Em Saudades do Carnaval, chega a afirmar que a crise da cultura “é, simultaneamente, crônica do isolamento do indivíduo, desprovido de valores genuinamente comunitários, e história do banimento dos ritos de desforra e compensação da individualidade reprimida; genealogia da solidão e saudades do carnaval”.
3. Metodologia
Para compreender esta fase da obra de Merquior anterior à sua adesão ao liberalismo e ao neoiluminismo, pretendo desdobrar esta análise em quatro partes:
1) uma definição teórica dos tipos de pessimismo a partir da obra Pessimism: Philosophy, Ethic, Spirit (2006), de Joshua foa Dienstag;
2) o levantamento das principais influências filosóficas do “jovem” Merquior, em especial nos livros Razão do Poema (1965) e Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969);
3) uma interpretação de Saudades do Carnaval; por fim, a possível proximidade de sua interpretação do Brasil com a de Gilberto Freyre (1900-1987).
Joshua foa Dienstag define o pessimismo a partir de três proposições: o fardo do tempo (a consciência temporal leva ao sofrimento humano); a ironia da história (a prosperidade material pode coexistir com uma degradação moral); e o absurdo da existência (o caráter contraditório da condição humana, em que felicidade e liberdade tendem a ser inconciliáveis). Em suma, o pessimismo se opõe à expectativa iluminista de progresso, salvação ou felicidade para a sociedade como um todo.
Dienstag postula três tipos de pessimismo: 1) cultural, para o qual o fardo do tempo aparece particularmente na moral e nos costumes; 2) metafísico, que dá menos importância à história do que ao relacionamento do individual com o universal, o qual seria inerentemente malévolo; 3) existencial, que ocupa uma posição intermediária, construindo uma “narrativa” que combina elementos modernos e universais.
Neste trabalho, pretendo enfatizar a proximidade de Merquior com o pessimismo cultural – por exemplo, em sua leitura da história do Ocidente moderno enquanto uma crise, um divórcio entre progresso técnico e decadência cultural e moral.
4. Resultados e Conclusões
No que diz respeito às principais influências intelectuais de José Guilherme Merquior, quatro delas serão brevemente discutidas no trabalho: Lukács (1885-1971), Heidegger (1889-1976), Benjamin (1892-1940) e Lévi-Strauss (1908-2009). Esses quatro autores permeiam os ensaios de seus primeiros livros. Ao longo do tempo Merquior se afastou filosoficamente dos dois primeiros, mas manteve uma admiração pelos dois últimos.
A interpretação de Saudades do Carnaval envolve a discussão de cinco temas deste livro nos quais o viés pessimista é mais pronunciado:
1) a interpretação decadentista da sucessão de estilos artísticos europeus, sendo a Renascença vista como apogeu cultural e todas as tendências posteriores, em especial o Romantismo, como declínio;
2) a leitura weberiana-frankfurtiana do processo de racionalização cultural, que enfatiza os efeitos negativos do crescente domínio da racionalidade instrumental;
3) a crítica cultural que enfatiza a anomia, a massificação e a decadência cívica e moral do homem moderno, com ecos de Tocqueville (1805-1859) e Burckhardt (1818-1897);
4) a análise do carnaval como “válvula orgiástica” para as tendências mais austeras da cultura moderna;
5) por fim, a análise, amparada em Eric Voegelin (1901-1985), do impacto sociocultural do gnosticismo na ascese intramundana evocada pelas seitas protestantes, o qual teria levado à “irrupção no Ocidente de uma cultura destituída (...) do apego a qualquer princípio ético transcendente” e à ascensão da “personalidade puramente apetitiva e egoística do homem moderno e contemporâneo”.
A interpretação do Brasil que aparece no penúltimo capítulo de Saudades do Carnaval aparentemente contradiz a leitura negativa do autor sobre os rumos da cultura moderna. Merquior argumenta que o processo de racionalização cultural não teria se completado em nosso país, na medida em que, por exemplo, nossa ética religiosa ainda seria sincrética, isto é, combinaria elementos místicos e ascéticos. Com isso, o etos cultural brasileiro seria ao mesmo tempo “conservador e anarquista, conformista e insubmisso”, marcado por um “individualismo inconstrutivo, mas aberto e generoso”. Em suma, o Brasil estaria “vacinado” contra o “anticarnavalismo” da cultura moderna.
Por outro lado, justamente por enfatizar que o Brasil teria conseguido resistir melhor a algumas das “mutilações humanas” provocadas pela racionalização da vida o autor adota um viés culturalista que remete bastante ao de Gilberto Freyre. Em primeiro lugar, pela semelhança das perspectivas sobre o papel do Brasil na modernidade (vide, p.ex., Além do Apenas Moderno, obra de Freyre publicada em 1973 e resenhada por Merquior); em segundo, porque o próprio Freyre dialoga com Saudades do Carnaval em Insurgências e Ressurgências Atuais (1983), reconhecendo sua perspectiva weberiana da relação entre modernização e burocratização e enaltecendo a sua abordagem do carnaval.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos