O desenvolvimento das identidades nacionais ao longo dos últimos três séculos é algo que instiga inúmeras pesquisas e reflexões nas mais diversas áreas do conhecimento humano. Entretanto a sociologia entrou tardiamente nas discussões sobre o tema, sendo Stuart Hall (2000, 2006) o principal sintetizador de análises que vieram, sobretudo, da história e da filosofia. Para Hall o conceito de “identidade” ocupa posição central nas reflexões contemporâneas, principalmente a partir da crítica desconstrutiva: “essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas [...]” remetendo à necessidade de sua historização para evidenciar essa natureza (HALL, 2000, p. 108).
A preocupação do sociólogo jamaicano-britânico é bem atual, a saber, investigar uma suposta “crise de identidade” que se originou na modernidade tardia, gerando um cenário de fragmentação da identidade centrada na nação e nas classes sociais para diversos outros eixos: gênero, sexualidade, etnia, raça (HALL, 2006, p. 7–9). Entretanto é o próprio Hall quem elucida sobre os equívocos dessa hipótese, que não percebe a multiplicidade da própria identidade nacional e as instabilidades que parecem ser-lhe intrínsecas. Interessa a este trabalho, com maior atenção, as identidades regionais que se constituíram em relação próxima com as identidades nacionais.
Mais especificamente, o objetivo deste trabalho é investigar o debate sobre o regionalismo que se produziu em Pernambuco ao longo da primeira metade do século XX, tomando Gilberto Freyre como figura-chave. Para isso lanço mão da seguinte questão: quais significados foram produzidos a partir do conceito de identidade regional pelos intelectuais pernambucanos deste período?
Nesse sentido a proposta é investigar, do ponto de vista teórico, as discussões que tomaram lugar, sobretudo em Recife. Entretanto, minha intenção não é tomar o regionalismo como um fenômeno localizado, e para isso dialogo com intelectuais que debateram a questão da identidade regional já no século XXI. Assim pretendo perceber sobre quais elementos eles lançam luz e de que forma suas contribuições podem permitir uma nova leitura do debate regionalista pernambucano, compreendendo-o na sua relação com a própria modernidade.
Com isso em mente defini objetivos específicos que permitam orientar minha leitura da obra de Freyre. O primeiro deles é verificar como se conforma o conceito de regionalismo ou identidade regional nas obras analisadas, no sentido de quais significados são mobilizados – possivelmente junto a um universo simbólico específico, que dialoga com determinadas paisagens, monumentos ou memórias. Muito próximo a esse está o objetivo de identificar quais referências teóricas são acionadas para a compreensão da região enquanto fenômeno social. O último é reconhecer como os conceitos de “tradição” e de “povo” são acionados junto ao de identidade regional de forma a estruturar uma determinada interpretação.
O objeto deste trabalho são algumas publicações de Gilberto Freyre entre as décadas de 1920 e 1940. Mais especificamente, vou me deter sobre os artigos publicados no Diário de Pernambuco ao longo da década de 1920, incluindo seus ensaios para o Livro do Nordeste (1925), além dos livros Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil (1937), Região e Tradição (1941) e Manifesto Regionalista de 1926 (1952).
Além de entender a obra de Freyre no ambiente intelectual pernambucano da primeira metade do século XX, a ideia é perceber de que forma ela dialoga com outros movimentos, como o modernismo do eixo Rio-São Paulo e as reflexões em torno do conceito de cultura popular. A ideia é constatar a evolução do pensamento freyreano sobre regionalismo, identificando possíveis influências e alterações que o sociólogo pernambucano raramente reconheceu em sua obra.
Nesse sentido parece ter sido importante a formação de Freyre nos Estados Unidos, que descarta a hipótese de que sua reflexão regionalista seja meramente fruto de um ideal localista. Cabe também ressaltar o diálogo de Freyre com alguns modernistas e sua passagem pelo Rio de Janeiro na década de 1930, sem contar sua relação com o grupo de estudantes de direito da geração de Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna na década de 1940, que parecem ter feito o sociólogo dar uma ênfase ao conceito de cultura popular que não estava presente nos seus textos de 1920. Basicamente o caminho que levou até a publicação do “Manifesto Regionalista” em 1952, evidenciando o processo de acumulação intelectual e como não faz sentido que o texto seja de 1926, como argumentou Freyre ao publicá-lo.
Referências Bibliográficas
FREYRE, G. Manifesto Regionalista. 7a ed. Recife: Massangana, 1996.
HALL, S. Quem precisa da identidade? In: Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11a ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos