Durante o 1º Congresso Afro-Brasileiro (Recife - PE, 1934) foram apresentadas duas versões completamente opostas da situação dos cultos afro-brasileiros em Alagoas. Valdemar Cavalcanti e Manuel Diégues Júnior acusaram a polícia alagoana de promover há anos sistemática campanha de repressão aos xangôs, com terreiros sendo destruídos e religiosos, presos e escoltados pelas ruas da cidade, vestidos em trajes litúrgicos e carregando os objetos cerimoniais. Cavalcanti e Diégues propunham que o 1º Congresso Afro-Brasileiro interpelasse a polícia alagoana e, por exetenção, de todos os Estados do País, para que fossem suspensas as campanhas contra o xangô e garantida a liberdade de culto religioso aos afro-brasileiros.
Alfredo Brandão apresentou a comunicação intitulada Os Negros na História de Alagoas, onde propõe abordar a atuação de africanos e seus descendentes em Alagoas no longo prazo histórico. Para ele os xangôs seriam encontrados em Alagoas no período posterior à abolição da escravatura (1888), mas, durante a campanha eleitoral de 1912, “populares exaltados” os invadiram, depredaram “e quase extinguiram o culto. Dizemos quase porque ainda hoje esses ritos são celebrados, embora muito reservadamente”.
Brandão e Cavalcanti/Diégues parecem falar sobre distintas Alagoas. Na de Brandão, os cultos afro-brasileiros estão quase extintos, celebrados muito reservadamente. Na Alagoas de Cavalcanti/Diégues, esses estão expostos de modo vexatório nas ruas da cidade através de seus religiosos presos, escoltados “com os seus trajes de cerimônias e os objetos de seu culto”. Descrevem a violência de Estado que denunciam vinha ocorrendo de modo organizado, sistemático e sustentado no tempo. Brandão desconsidera o presente e a atuação do Estado, olha olha para o passado, narrando um evento de depredação e pretensa quase extinção que estaria singularizado pela ação popular.
Os textos tiveram destinos diversos: o de Cavalcanti/Diégues foi publicado no Diário de Pernambuco em 16 de novembro de 1934 e tem passado despercebido nas discussões sobre o universo religioso afro-brasileiro em Alagoas; o de Brandão seria editado em 1935 (nos anais do Congresso), em 1988 (por iniciativa da Comissão do Centenário da Abolição) e seria integrado à bibliografia canônica dos estudos afro-alagoanos. Talvez por isso a contradição que a leitura de ambos apresenta nunca tenha chegado a ocupar os pesquisadores. Existe outra diferença marcante: enquanto Cavalcanti/Diégues apresentam uma denúncia seguida de estratégia de intervenção, Brandão elabora um ensaio com prerrogativas de contribuição científica.
O saber acumulado pelo pensamento social alagoano sobre o xangô ao longo do século XX apresenta um conjunto de textos elaborados com pretensão científica que reproduz a atitude de atribuir silêncio ao xangô, ao lado de outros igualmente produzidos por intelectuais, mas que objetivam denunciar repressões ou relatar o cotidiano desse universo religioso, bem como propor formas de mediação social com os setores dominantes. Além de reconstituir o diálogo e confronto dessas ideias no debate público, analiso como a produção contemporânea baseou-se em apenas uma vertente dessa produção, de modo a produzir uma perspectiva interpretativa que não abarca as agências religiosas e suas negociações por legitimidade, a violência de Estado e a violência simbólica perpetrada pelas instituições de saber.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos