A ilha e o Ornitorrinco: a dualidade dos resultados do Ideb na PMV-ES
Daniel Barboza Nascimento
No esforço de efetuar um olhar por dentro, dialogando com a lógica interna do Ideb para, assim, melhor compreender os resultados "pra fora", ou seja, o que ele quer esconder ou o que não pode revelar, indagamos: estaria o Ideb apenas refletindo as diferenças sociais e, ou, em que medida o Ideb contribui para alimentar uma concorrência entre as escolas, entre os estudantes e famílias, dilatando as diferenças “escolares” e sociais? A 1ª questão pode sugerir uma condição passiva e a 2ª questão nos solicita atenção para processos endógenos e exógenos. Afirmamos que a lógica do Ideb busca encobrir as diferenças sociais, ao mesmo tempo em que as nutre e as potencializa. Esboçamos um itinerário de análise: conversamos com os "resultados" em nível municipal por escola e região (2005-19). Num 2º momento, a referência não será o desempenho municipal, passaremos à própria escola e sua meta própria, por região e em nível municipal. Assim, nosso esforço repousa sobre análise dos resultados dos anos iniciais, depois os resultados dos anos finais do Fundamental. No 3º momento, assumiremos o desafio de "comparar", com todo risco latente, ambos os resultados. Depois, apresentaremos questões sobre a política educacional.
Nossa suspeita inicial é que o local, bairro ou região em que a escola[1] se encontra "exerce" influência sobre o resultado. A sentença não nos parece nova, de certo modo, Pierre Bourdieu já nos chamava atenção para tal possibilidade. Assim, precisamos primeiro estabelecer o fato: o lugar[2] diz sobre o resultado dos exames? E, se realmente isso ocorre, acontece em que medida? Caso se confirme a hipótese, alguma escola "escapa" a tal premissa? Efetuada a análise e, se confirmada a hipótese, perguntaremos sobre seus impactos na política pública e, em especial, sobre as condições e relações impostas aos(as) professores(as).
Ao se analisar os resultados do Ideb das escolas municipais na cidade de Vitória associados ao lugar em que estão (e as suas reais condições), revelam-se duas cidades: a cidade/continente com os melhores resultados e as melhores condições socioeconômicas de um lado, e, de outro, a cidade/ilha que atende as periferias de morros e da baixada como expressão dos “piores resultados”.
Caminhamos sobre pegadas de gigantes
A burguesia disputa o conteúdo da escola pública, sua forma de organização e as relações de trabalho em seu interior. As duas coisas não são novas, no principal, a escola remunera a sociedade burguesa e ela é utilizada para, de forma aparentemente "neutra", distribuir pessoas e ocupações sociais. Atualmente, encontramos dois movimentos que estão de mãos dadas, mas que, certamente, conhecerão seu divórcio: o ultraconservadorismo, no debate de conteúdo, e o ultraliberalismo, em sua organização e forma (também em conteúdo). As duas proposições têm impacto sobre a consciência (corações e mentes) e no corpo dos professores (gerando inúmeros tipos de adoecimentos) e nos parece que a 2ª, menos explícita, logo menos evidente, pode ter consequências severas e mais permanentes devido, sobretudo, à sua institucionalização.
Convidamos dois pensadores para participarem de nossa conversa[3] sobre “A ilha e o Ornitorrinco” que se destacaram na elaboração e ação, em relação a seus tempos vividos, bem como nos presentearam com um legado militante e fundamentação teórica ímpar. São eles: Florestan Fernandes[4] e Chico de Oliveira[5].
Se os governos (e os capitalistas) não conseguirem privatizar a escola pública, farão de tudo para liberalizá-las, ou seja, para que funcionem como empresas capitalistas. Os ingredientes laçados das contribuições de Chico Oliveira e Florestan Fernandes nos colocam uma lupa para detectar os elementos internos dos processos liberalizantes que perseguem a privatização e desnudam a aparente neutralidade das Avaliações em Larga Escala e seus “Apps” agregados: competição, ranqueamento, bonificação.
Compreender os resultados do Ideb à luz das condições socioeconômicas é revelar a dualidade da cidade e, sobretudo, do sistema educacional o qual lembra a natureza da argila que compõe os seus “pés de barro”. O combustível para fazermos o contraponto ao receituário ultraliberal na educação, bem como à lógica da “escola como uma empresa”, dissimuladamente irradiado pelas ALEs, vem da produção teórica e vida de Florestan Fernandes em sua luta incansável e, necessariamente, intransigente na defesa da Escola Pública.
A Avaliação em Larga Escala é a forma mais elaborada e dissimulada de se atingir tal propósito: em sua forma tímida, exacerba o ranqueamento e a meritocracia, apresentando como propósito primeiro (e seu FIM) a Bonificação. Eis a face perversa da avaliação em larga escala (é possível ter outra?), assim, a bonificação é a individualização salarial, objetivo central do capitalismo (salvação/desgraça individual).
Diante do exposto, as novas formas organizativas onde o controle (e, nos parece, também, o sentido) do projeto pedagógico e ação dos professores encontram-se FORA da escola, numa espécie de "gerência-científica". Os frutos do ranqueamento e de seu superlativo, a bonificação, associados aos processos de intensificação do trabalho pedagógico, têm buscado impor um novo tipo de trabalho e trabalhador na educação. Em busca de sua desmistificação, propomos desmontar o discurso das Avaliações em Larga Escala e as bonificações[6] relacionando-os às condições socioeconômicas, expressão dos “reais” resultados.
[1] Entendemos que a escola (em seus múltiplos e diversos movimentos) é maior do que qualquer índice possa expressar e que o próprio número é uma fotografia, que precisa ser assim entendido. Preocupa-nos é a capacidade de um sistema que, se utilizando de “congelamentos”, busca “determinar” o dinamismo próprio das escolas. Essa capacidade é a intencionalidade escondida no que chamamos de lógica do Ideb e ou quando a dinâmica da escola se converte em processos deliberados ou não.
[2] Em suas múltiplas dimensões, expressando sempre tensões e movimentos.
[3] De verdade, nos parece que foi o inverso...
[4] Com os movimentos mais recentes do empresariado da educação em relação a política educacional percebemos uma Nova Revolução Burguesa na Educação Brasileira
[5] O título é uma homenagem ao sociólogo Francisco de Oliveira, em especial ao seu livro "A economia brasileira: crítica à razão dualista,” onde identificou o subdesenvolvimento como produto histórico da formação do capitalismo no Brasil.
[6] Ainda que possamos dissecar, analiticamente a bonificação, não podemos perder sua totalidade. A mesma está agregada à política educacional, pois é, ao mesmo tempo, parte e determinante daquela.
O II Seminário de Pensamento Social Brasileiro – intelectuais, cultura e democracia, organizado pelo NETSIB-UFES, realizado entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, na modalidade online, transmitido pelas páginas oficiais do evento no Youtube e no Facebook e pela DoityPlay.
https://netsib.ufes.br/seminario/cadernoderesumos