Introdução
Nos últimos dois anos, professores se afastaram da escola devido à Covid-19 e passaram a ter contato com o ensino remoto e/ou híbrido. Esse cenário provocou reflexões acerca do ensino e permitiu (re)pensar o significado de ser professor e de como se constitui sua identidade profissional. Assim, através de uma abordagem qualitativa e interpretativa de pesquisa, evidenciam-se aspectos do movimento identitário da professora Maria[1] em entrevistas realizadas com ela em 2019 e, depois, em 2021, período que marca o ingresso no estágio supervisionado I e a chegada da pandemia.
Parte-se do pressuposto de que o contato com novos/outros contextos, com diversos formatos de ensino e com diferentes interações dos professores com estudantes, escola e sistema de ensino, vem proporcionando a (re)construção de conhecimentos e experiências que potencializam os movimentos identitários desses profissionais. Para ilustrar o estudo, focalizamos aqui em alguns indícios evidenciados por Maria em 2019 e em 2021, os quais são analisados a partir do conceito de identidade (HALL, 2006) e das componentes do autoconhecimento (KELCHTERMANS, 2009).
1. Fundamentação teórica
Ao fundamentar-se nos autores mencionados, considera-se que "[...] a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia [...]" (HALL, 2006). Isso significa que somente em um mundo utópico a identidade permanece inalterada. Partindo desse pressuposto, e assumindo uma perspectiva social de constituição da identidade profissional, Rodrigues e Cyrino (2020) mostram que ela se constitui de um aspecto social, que carrega consigo “[...] vozes de outros (sujeitos, textos, objetos, experiências...) [...]” (p. 3); e de um componente individual, algo que é particular “[...] de cada sujeito, a partir de suas vivências e de seu modo de ver o mundo [...]” (p. 6). Para os autores, esse último pode ser representado pelo autoconhecimento ao permitir que o sujeito desenvolva a compreensão acerca de si mesmo como professor, a partir de um “[...] processo contínuo de dar sentido às suas próprias experiências [...] e [de] como reagem às mudanças educacionais [...]” (RODRIGUES; CYRINO, 2020, p. 6), foco principal do estudo comentado. Por isso, Kelchtermans (2009) chama atenção à necessidade de se conhecer e compreender as componentes associadas ao autoconhecimento.
Quadro 1 - Componentes do autoconhecimento
Componentes
Descrição
Autoimagem
Refere-se à forma como os professores se caracterizam como professores. Essa imagem se baseia na autopercepção e é fortemente influenciada pelo modo como a pessoa é percebida pelos outros (p. 261).
Autoestima
Relaciona-se à apreciação do professor em relação ao seu desempenho no trabalho. Para isso, o feedback de outras pessoas é importante, principalmente o dos alunos. Todavia, ele é filtrado e interpretado pelo professor (p. 262).
Motivação do Trabalho
Refere-se aos motivos ou impulsos que levam as pessoas a optarem por ser professor, por permanecer na docência ou desistir dela. A percepção de tarefas e as condições de trabalho são cruciais para a motivação no trabalho (p. 262).
Percepção das Tarefas
Engloba a ideia do professor a respeito do seu programa profissional, suas tarefas e deveres para fazer um bom trabalho (p. 262).
Perspectiva do futuro
Abrange as expectativas de um professor sobre seu futuro no trabalho. É o resultado de um processo interativo contínuo de criação/construção de sentido (p. 263).
Fonte: Elaborado pelos autores (2021) a partir de Kelchtermans (2009, tradução nossa).
Como visto, as componentes descritas são articuladas e constituem o autoconhecimento de professores. Por isso, devem ser consideradas no estudo dos movimentos identitários, visto que permitem aos docentes uma reflexão constante e consciente sobre sua identidade profissional e de como ela pode ser modificada e transformada a partir de suas vivências individuais e coletivas.
2. Resultados alcançados
Maria, ao responder, em 2019, a pergunta “Como você se tornou professora de matemática?”, relatou ter iniciado a licenciatura em matemática em 2010, pois dentre as opções disponíveis em sua cidade, o curso citado era o que mais lhe interessava. Essa resposta evidencia a componente motivação do trabalho, já que mostra o impulso que levou Maria a escolher sua profissão, argumento que é reforçado quando ela menciona, em 2019 e em 2021, seu apreço por lecionar, algo que a faz continuar na docência.
Frente ao questionamento sobre dificuldades e compensações de sua profissão no período de ensino remoto/híbrido, Maria disse agora em 2021, que só tem compensações e que ter uma boa relação com os alunos é um dos fatores positivos. Essa avaliação de seu contato com os estudantes parte do feedback deles, uma vez que relatam gostar do “modo como ela ensina”. Logo, percebe-se a presença do aspecto autoestima. Maria disse ainda que poderia considerar a pouca participação dos alunos às aulas durante a pandemia, como uma dificuldade. Mas, entende que essa situação se relaciona ao momento atual, já que muitos estudantes não têm infraestrutura para participarem de aulas on-line. Essa compreensão também é notada quando ela diz: “[...] tento entender os meus alunos o máximo que eu posso [...]”. Tal afirmativa mostra que ser compreensiva é uma característica de sua autoimagem como professora, aspecto que não foi alterado durante o período pesquisado.
Em 2019, ao descrever como é a sua rotina no trabalho, Maria destacou que “o meu tempo é deles”, se referindo aos alunos. E continuou: “[...] o tempo que tenho para dar aula, uso pra dar aula e o tempo que tenho pra preparar, eu preparo”. Esse argumento aponta para o aspecto percepção de tarefas conforme mencionado no Quadro 1. Em 2021, Maria relata que para sua prática atual, precisa ter domínio de tecnologias, o que ela afirma possuir, e empregar os conhecimentos pedagógicos como antes. Assim, ela mostra uma autopercepção, o que remete à componente autoimagem.
Para a indagação sobre como tem sido a sua experiência com o ensino remoto/híbrido, Maria relata em 2021 que nunca se imaginou como professora “de outro ensino” que não fosse o presencial, o que se relaciona com suas perspectivas de futuro antes da pandemia. Mas, com o período pandêmico, surgiu o contato com outros tipos de ensino. Por isso, hoje, ela gosta tanto do ensino híbrido quanto do presencial e destaca a possibilidade de inseri-lo como metodologia de trabalho quando as aulas retornarem. Desse modo, Maria demonstra ter construído novas perspectivas do futuro (KELCHTERMANS, 2009). Ante ao exposto, vê-se que a identidade de Maria foi se movimentando a partir das experiências que a perpassaram no contexto de pandemia. Assim, confirma-se a afirmativa de Hall (2006) acerca da utopia de uma identidade permanente.
Conclusões
A partir do que foi dito e considerando os contextos distintos (2019 e 2021), não foram perceptíveis alterações na autoimagem, na autoestima e na motivação do trabalho descritas por Maria. Em relação à percepção de tarefas, ela se mostra, em ambos os períodos, consciente do que é preciso fazer para realizar seu trabalho. Quanto às perspectivas do futuro, nota-se alguma mudança, pois a alteração inesperada do cenário educacional a fez olhar para possibilidades de ensino que antes ela não cogitava. Dessa forma, confirma-se que ocorreram movimentos identitários dessa professora no contexto de pandemia, visto que ao menos um dos aspectos do autoconhecimento foi se modificando e se transformando a partir das vivências individuais e coletivas experienciadas por ela.
Principais referências bibliográficas
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11. ed. rev. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
KELCHTERMANS, Geert. Who I am in how I teach is the message: self?understanding, vulnerability and reflection. Teachers and teaching: theory and practice, v. 15, n. 2, p. 257-272, 2009.
RODRIGUES, Paulo Henrique; CYRINO, Márcia Cristina de Costa Trindade. Identidade profissional de futuros professores de Matemática: aspectos do autoconhecimento mobilizados no Vaivém. Zetetiké, v. 28, p. 1-26, 2020.
[1] Considerando os princípios éticos de pesquisa, usa-se um nome fictício para identificar a professora.
Comissão Organizadora
Sociedade Brasileira de Educação Matemática - ES
Instituto Federal do Espírito Santo - campus Cacho
Comissão Científica
Alcelio Monteiro - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Alex Jordane de Oliveira - Ifes campus Vitória
André Nunes Dezan - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Andréia Weiss - UFES campus de Alegre
Anny Resende Negreiros - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Aparecida Ferreira Lopes - PMVV/PMV
Elcio Pasolini Milli - SEDU – ES
Elda Alvarenga - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Elemilson Barbosa Caçandre - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Ellen Kênia Fraga Coelho - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Fulvia Ventura Leandro Amorim - Pólo UAB – Cachoeiro de Itapemirim
João Lucas De Oliveira - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Jorge Henrique Gualandi - IFES – campus Cachoeiro de Itapemirim (Presidente da comissão)
Júlia Schaetzle Wrobel - UFES – campus Vitória
Marcela Aguiar Barbosa - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Maria Laucinéia Carari - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Organdi Mongin Rovetta - SEDU-ES
Ronei Sandro Vieira - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Rubia Carla Pereira - Ifes campus Viana
Simoni Cristina Arcanjo - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Thiarla Xavier Dal-Cin Zanon - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Wanielle Silva Volpato - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim
Weverthon Lobo de Oliveira - Ifes campus Cachoeiro de Itapemirim