O texto que segue objetiva discutir possibilidades da escrita biográfica para história intelectual da educação. Nosso ponto de partida investigativo é o estudo das trajetórias de intelectuais com inserção no âmbito da educação, de onde temos ampliado o debate na tentativa de problematizar o uso da biografia como possibilidade de escrita histórica, tratando-se de um estudo de cunho teórico. Para realização desse empreendimento subdividimos a temática biográfica em três dimensões: 1) no primeiro aspecto analisamos o gênero biográfico na perspectiva histórica cuja finalidade foi perceber as transformações que a modalidade sofreu ao longo dos anos. Com isso foi possível perceber que de modo geral até o século XIX os estudos biográficos se limitaram a desenhar o retrato de personagens representativos dos valores esperados nas personalidades políticas. Foi somente na confluência com as Ciências Sociais que muitos historiadores do final do século XIX e início do século XX passaram a questionar a história tradicional e em consequência a supervalorização do político e em consequência a biografia; 2) esses questionamentos do século XIX irá resultar no inicio do século seguinte um debate que consiste no que podemos chamar de negação do gênero biográfico pela história. Já no ano de 1903, o sociólogo François Simiand denunciou os três ídolos da história que seriam a cronologia, política e a biografia. O ataque ao ídolo das tribos dos historiadores fazia uma referência direta a uma das maiores influências da história política, Charles Seignobos, professor da Sorbone. A negação da biografia pela sociologia tem relação ao próprio entendimento, particularmente de Emile Durkheim, para o qual o papel da sociologia é explicar os fenômenos sociais a partir das lógicas sociais. Lucien Febvre e Marc Bloch ao criarem sua revista em 1929 têm como norte os estudos durkheimianos adaptando-os ao território do historiador. Quando lançam, em 1929 a Revista Annales de História Econômica e social, Marc Bloch e Lucien Febvre retomam o questionamento de Simiand e os três ídolos da história ficarão de fora dos discursos históricos, o que significa dizer que o gênero biográfico fica quase esquecido; 3) em terceiro lugar observamos, em um dialogo interdisciplinar o que podemos falar do retorno biográfico. A polêmica iniciada no final do século XIX por François Simiand e debatida amplamente com historiadores dos Annales ganha proporções significativas em 1949 com a antropologia de Claude Lévi-Strauss e tem reflexões bastante profundas no campo da filosofia com Jean Paul Sartre e Michel de Foucault. Nesse sentido os estudos de Jean Paul Sartre antecipando aos debates historiográficos mais profundos no campo da história se insere nessa terceira dimensão de busca do biográfico e irá impactar a aceitação do uso da biografia nas ciências sociais. Em o idiota da família (1952) esse autor trás uma reflexão bastante significativa para o estudo de uma vida, tomando como objeto de estudo a trajetória do escritor francês Gustave Flaubert. Partindo do tema: o que se pode saber de um homem hoje em dia? Sartre dicotomiza a escrita do individuo asseverando que um homem nunca é individuo. Nessa forma de entendimento ele empreende uma analise dialética que consiste no que classifica como universal singular. Esse universal seria a soma totalizada de tudo o que um homem vive em sua época, em termos culturais, políticos e sociais, mas que nela se reproduz como individualidade. A partir dessa convivência com o universal, Sartre considera que um determinado individuo deve ser estudado em duas pontas: uma que olhe esse universal; outra que classifique como esse individuo se aproprie do universal para sua trajetória particular ou singular. Levantando essa questão o autor chama atenção para construção de um método apropriado para se escrever uma vida. Tomando como objeto de estudo a trajetória de Gustave Flaubert questiona por onde começar a estudar o individuo? Sua resposta é que podemos entrar em um morto a maneira que quisermos. Dessa resposta um tanto quanto simplista ele entra em um aspecto fundamental: desde que seja problematizada uma questão principal no objeto a ser analisado. No caso particular de Flaubert ela cita um trecho de carta onde o escritor desabafa um sentimento de tristeza muito grande e que ele procura suprimir com muito trabalho. O questionamento posto por Sartre é que uma chaga nunca aparece de forma natural e é preciso ver de onde essa tristeza se origina. É esse aspecto que Sartre procura descobrir na infância de Flaubert. Nesse ponto de vista é ilustrativo um depoimento dado pela sobrinha dele, onde ela diz que segundo sua avó (mãe de Flaubert), quando criança ele demorou muito a ler e a família detentora de autos saberes o considerava como retardo. Dessa inflexão Sartre busca uma ajuda interdisciplinar utilizando-se de ensinamentos da psicologia, linguística, marxismo e reflexões da filosofia. Nessa busca interdisciplinar ele lança uma metodologia que denomina de analise regressiva cuja finalidade é tentar encontrar o que estava faltando em Flaubert para ele ser considerado retardado. Em Flaubert ele identifica que a dificuldade de aprender vem de um transtorno mais antigo, a dificuldade de falar. Desse problema somada a inflexibilidade do pai e da mãe, as cobranças diante de um possível fracasso familiar, em consequência de falta de êxitos escolares, vai deixando traumas no menino Flaubert. Esse método necessita ser prosseguido por uma síntese progressiva, onde em si é possível identificar a superação dos traumas. Nesse sentido, Sartre procura na infância do biografado indícios de como um menino considerado retardado pela família tornou-se um dos grandes gênios da história. Antecipando-se ao manifesto historiográfico de 1970, nessa obra cujo primeiro volume foi escrito em 1952, Sartre não se preocupa em entender o indivíduo em si, mas busca correlações familiares e sociais mobilizadas pelas indicações metodológicas das ciências sociais. Com isso, ao invés de se concentrar no indivíduo, Sartre busca uma reflexão no vivido de Flaubert que permite o resgate do percurso biográfico. Por um lado, com o auxílio da psicologia ele encontra traumas de infância que fizeram com que Flaubert fosse considerado como um retardado; por outro lado, a partir da superação, torna-se possível perceber como Flaubert se projeta do regional ao universal. Essa projeção só é possível a partir do momento em que Sartre propõe um trabalho de inserção do biografado nos vários espaços sociais. Esse tipo de analise se aproxima da perspectiva adotada pela história intelectual que procura descentralizar o individuo em um novo sentido para o estudo do individuo e, sobretudo das analises do sociólogo francês Pierre Bourdieu, que em sua ilusão biográfica questiona a obsessão por querer saber tudo de uma vida analisada. Com as reflexões de Jean Paul Sartre, damos continuidade ao projeto de pensar o individuo para estudos históricos. Nossas inciativas tem como principal objetivo trazer as discussões de antropólogos, sociólogos, filósofos para pensar o individual. De uma forma geral buscamos estabelecer diálogos com um amplo programa de pesquisas fora do campo histórico que visam além de alargar os horizontes interpretativos entender o retorno biográfico na história a partir dos anos de 1980. Somente dessas reformulações e buscas interdisciplinares é possível perceber a fecundidade histórica do gênero biográfico. A crítica histórica, por um lado, somado às reflexões no amplo campo das ciências sociais, fazem dos estudos biográficos imprescindíveis para a história social, cultural e política. O fato é que na atualidade a biografia tem sido marcada por enfoques analíticos variados que provoca a ruptura com a história de vida que conta do nascimento até a morte e oferece mecanismos capazes de relativizar o indivíduo biografado. Nessa direção ao escrever a biografia essa desfavorecida da história, no final de 1980, o historiador Marc Ferro criticou a radicalização ao combate dos grandes homens e lamentou que a história não se beneficie em nada com a biografia. Com isso os historiadores não precisam mais justificar-se ao utilizar a escrita de vida como objeto de suas pesquisas. Concluímos enfatizando que nossas pesquisas tem como finalidade principal demonstrar como os estudos biográficos podem ser utilizados na perspectiva da história intelectual da educação. Ao mesmo tempo buscamos ampliar os debates, já iniciados em pesquisas anteriores, onde utilizamos as discussões de Bourdieu e Gramsci. As reflexões de Jean Paul Sartre presentes na obra o Idiota da família configuram consistentes ferramentas teóricas e metodológica para pensar a escrita de uma vida em pesquisas históricas.
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Érico Ribas Machado
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