A partir da segunda metade do século XX, uma série de inovações técnicas (como ventilação pulmonar, técnicas de reanimação e nutrição artificial, entre outros) deu origem à emergência da terapia intensiva, possibilitando o prolongamento artificial da vida. O arcabouço desses avanços na medicalização e tecnificação do fim da vida, entre outras questões, levou a uma mudança nos critérios para determinar a morte (ABIKAIR FILHO, 2013).
Desde a década de 1970, começaram a ganhar visibilidade casos polêmicos sobre a tomada de decisão sobre o final da vida. O movimento Hospice e os cuidados paliativos; o surgimento da bioética e a ênfase na autonomia do paciente; e os movimentos pela legalização da eutanásia e pelo direito à morte com dignidade que esses casos contribuíram para vitalizar, colocaram no centro do debate público a forma como o morrer e a morte eram tratados em ambientes médicos, bem como o direito dos pacientes de participar da tomada de decisões nos seus momentos finais.
Casos de batalhas jurídicas pelo direito de morrer em tribunais de diversos países continuam a alimentar o debate público sobre a eutanásia e a morte digna, levando para a arena judicial o trâmite dos conflitos em torno desses temas. São debates que envolvem múltiplos fatores legais e bioéticos, como o direito à autonomia do paciente e o princípio da dignidade humana (FREIRE DE SÁ; DADALTO, 2018).
Esta breve pesquisa delibera sobre uma das questões mais antigas da filosofia, teologia, (bio)ética e medicina, ou seja, a questão da morte e do morrer, situando-a em um contexto contemporâneo, onde a medicina contemporânea, com seu conhecimento em expansão no campo da ciência e tecnologia biomédica, requer uma nova abordagem na determinação de seus objetivos, sob um ponto de vista interdisciplinar.
Assim, este estudo tem como objetivo analisar a ortotanásia, ou o direito a uma morte digna, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.
Este estudo foi realizado por meio de uma revisão de literatura, com abordagem qualitativa, utilizando o método dedutivo, onde a análise parte de argumentos gerais para particulares. Trata-se de um resumo de pesquisas anteriores sobre o tema, envolvendo artigos acadêmicos, livros e outras fontes relevantes. Assim, uma revisão de literatura deve enumerar, descrever, resumir e avaliar objetivamente pesquisas anteriores.
De acordo com D’Ávila e Ribeiro (2011), o conceito de dignidade, referindo-se à pessoa humana, pode ser definido em um nível filosófico como o valor moral em virtude do qual a pessoa é reconhecida como um fim em si mesma. Foi, sem dúvida, o primado deste valor na ética que o determinou no artigo 5º da Constituição de 1988, proclamado, juntamente com os demais valores enunciados no mesmo regulamento
Em linhas gerais, existem duas maneiras de evocar a noção de dignidade. Uma é considerá-la como algo intrínseco e ontológico, o que alguns autores chamam de dignidade básica. Deste ponto de vista, a dignidade é uma característica irrevogável da pessoalidade que não depende ou varia de acordo com as circunstâncias. A segunda perspectiva refere-se ao que se denomina dignidade dinâmica, ou seja, uma qualidade pessoal que está relacionada à percepção que as pessoas têm de si mesmas e do contexto em que vivem (MÖLLER, 2008).
No presente estudo, a dignidade é considerada de acordo com Möller (2008), que a entende como uma característica fundamentalmente intrínseca do indivíduo. No contexto dos pacientes no final da vida, outra questão fundamental é como a percepção de dignidade é mediada pelo senso de autonomia. Embora os dois termos (autonomia e dignidade) sejam às vezes considerados conceitos distintos, isso nem sempre é o caso neste cenário. Na verdade, uma perda de autonomia ou controle entre os pacientes é frequentemente interpretada como uma perda de si mesmo e do senso de dignidade. Isso significa que a pessoa vive com a dignidade que lhe é própria quando, graças ao gozo real de seus direitos, desenvolve sua personalidade, determinando sua vida com consciência e autonomia. (MORATO, 2019).
Esse direito é legalmente possível, em alguns países, como a Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Suíça, Canadá, Colômbia e alguns estados da Áustria e dos Estados Unidos, que regulamentaram, em maior ou menor medida, o direito de receber ajuda para morrer (DORST, 2015).
Nessa concepção, Freire de Sá e Dadalto (2018) afirmam que devem ser descartados dois pressupostos em que não se pode, de forma alguma, falar de morte digna: causar a morte, quaisquer que sejam as razões que se pretende justificar (eutanásia), e aquela que é atrasada artificialmente, por meio da chamada ferocidade terapêutica (distanásia). No primeiro caso, é claro que o direito da pessoa à autodeterminação de sua vida é mutilado e, no segundo, a pessoa não é tratada como um fim, mas como um meio a serviço de outros fins.
Segundo Dworkin (2009), as três formas de eutanásia, comumente denominadas direta ativa, passiva e indireta ativa, permanecem, em princípio e a salvo de objeções e ressalvas, como possíveis caminhos para uma morte digna.
A eutanásia direta ativa é aquela realizada com a administração de um produto diretamente letal ao solicitante, porque a vida não é mais desejável para ele. Aqueles que postulam sua admissão, defendendo o direito ao suicídio assistido, entendem que a autodeterminação da própria vida não só implica a livre condução do projeto de vida de cada um, mas também o poder de decidir quando e em que circunstâncias deve ser encerrada (SANTOS, 2015).
A eutanásia passiva é a omissão da atividade terapêutica por decisão unilateral do doente terminal que se recusa a se submeter a tratamento médico ou cirúrgico que possa prolongar sua vida e aceita que seu processo mórbido termine naturalmente (SANTOS, 2015).
A eutanásia indireta ativa consiste na administração ao doente terminal que solicita ou consente, drogas capazes de suprimir ou atenuar seu sofrimento, embora também sejam capazes de acelerar uma morte previsível irrevogável. O que se busca com essa forma de eutanásia é abreviar a agonia e proporcionar ao paciente em transe final o maior bem-estar e serenidade possível, aceitando o resultado de um eventual encurtamento de vida (SANTOS, 2015).
No Brasil, a eutanásia é considerada homicídio, previsto no Código Penal, em seus artigos 121, 122 e 135. Entretanto, a ortotanásia não constitui crime contra a vida. Apesar de haver confusão entre os conceitos, não se deve confundir a eutanásia passiva, que, como visto, é a omissão terapêutica por parte do paciente, com a ortotanásia, onde, de acordo com Sztajn (2009), não há intervenção para antecipar a morte, buscando que esta ocorra naturalmente, onde o paciente esteja confortável, sem dor ou intervenções artificiais para prolongar sua vida, recebendo somente cuidados paliativos.
O que se busca é abreviar a agonia e proporcionar ao paciente em transe final o maior bem-estar e serenidade possível, aceitando o resultado de um eventual encurtamento de vida. A Constituição brasileira de 1988 revela que a dignidade da pessoa humana é um dos alicerces do Estado. Desse modo, na medida em que um paciente não tenha mais chance de cura e evite tratamentos que lhe causem mais dor e sofrimento, que só prolongam a morte, deve ter o direito de morrer com dignidade. E esse direito se concretiza com a prática da ortotanásia, que significa a morte certa, no momento certo, não sujeitando o paciente terminal a tratamentos desumanos e degradantes, que visam apenas prolongar sua morte, sem qualquer chance de cura, desde que respeitada sua vontade (MORATO, 2019).
A questão da ortotanásia é um exemplo de consenso moral no Brasil. A prática foi proibida por lei e pelo Código de Ética Médica por muitos anos, até que, em 2006, o Conselho Federal de Medicina emitiu uma resolução, de nº 1805/06, permitindo a ortotanásia ou a retirada de cuidados em uma doença terminal para permitir uma morte passiva. Após ação do Ministério Público Federal, a fim de bloquear esta resolução, em 2010, chegou-se a um consenso, tornando possível que, diante de um quadro terminal e irreversível, os médicos possam evitar procedimentos terapêuticos e diagnósticos desnecessários, bem como tratamentos que tenham por objetivo o prolongamento da vida, oferecendo ao paciente os cuidados paliativos necessários (D’ÁVILA; RIBEIRO, 2011).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Assim, Dadalto (2019) ressalta que originalmente a morte digna através da ortotanásia foi erigida como um imperativo ético para buscar uma morte de acordo com a dignidade humana, e só posteriormente passou a ser aceita pelo sistema jurídico. Tal contexto teve origem na medida em que a medicina emergiu como regulador técnico do processo de morrer (medicalização da morte) e contra a implementação de práticas médicas que já não têm nenhum sentido terapêutico e que apenas são capazes de prolongar a agonia de pacientes cuja irrecuperabilidade está bem definida (estados críticos irreversíveis) e, portanto, contra a ferocidade de tratamentos médicos desumanos.
Para Abikair Filho (2013), não se trata mais de vincular a morte digna a um hipotético direito de dispor da própria vida, mas de pesar, em relação ao respeito à dignidade da vida humana, aquele que também merece um direito fundamental expressamente declarado na Constituição, de não ser submetido em nenhum caso a tortura ou tratamentos desumanos ou degradantes.
Atualmente, em cenário de pandemia, houve a necessidade emergencial de se entender com seria a análise desse fim.. No fim, como se não bastasse, o afastamento forçado durante o velório e o enterro, consequências reais de um estudo que não havia sido realizado, mas que forçou toda a sociedade a se fazer durante seu contexto e seu uso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da mesma forma que as pessoas se preparam para a chegada de uma nova vida, devem também fazê-lo para acompanhar o ser humano ao final dela. A dignidade da morte é determinada pelos valores, crenças e necessidades de cada indivíduo, e o respeito por este momento importante na vida de cada um é um dever profissional e uma responsabilidade social que deve ser garantida.
A ortotanásia, que visa uma morte digna, no momento certo, é o procedimento pelo qual o médico suspende o tratamento, ou apenas realiza terapias paliativas, para evitar mais dor e sofrimento ao paciente em estado terminal que não tem mais chance de cura, desde que esta seja a sua vontade, assegurando-lhe o direito de morrer com dignidade, como coextensão da dignidade da pessoa humana.
Esses dilemas éticos e morais exigem uma reflexão sofisticada que, por sua vez, requer a participação de todo o corpo social, especialmente em uma sociedade extremamente desigual como a do Brasil. Quando a própria moralidade se torna problemática e surgem conflitos que se opõem ou colocam em xeque os sistemas e valores, somente uma profunda reflexão bioética e o alcance de um consenso moral entre todas as partes envolvidas, podem resolver o problema.
Sabe-se que é uma tarefa extremamente complexa, mas, por isso mesmo, é ainda mais necessário que seja debatida de forma aprofundada por toda a sociedade, por se tratar de uma das questões mais transcendentais para todos os cidadãos.
REFERÊNCIAS
ABIKAIR FILHO, J. A ortotanásia sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana no fim da vida. 2013. 159f. Dissertação (Mestrado em Direito e Garantias Fundamentais) – Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Vitória, 2013.
DADALTO, L. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Revista de Ciências Jurídicas Pensar, Fortaleza, v. 24, n. 3, p. 1-11, 2019.
D’AVILA, R. L.; RIBEIRO, D. C. A terminalidade da vida: uma análise contextualizada da Resolução CFM nº 1.805/06. In: MORITZ, R. D. (Org.). Conflitos Bioéticos do Viver e do Morrer. Brasília: CFM, 2011.
DORST, D. Z. et al. Analise Hermenêutica da Ortotanásia: Aplicação dos Métodos de Interpretação da Norma Constitucional a Morte Digna. Revista de Direito Brasileira, v. 10, n. 1, p. 23-29, 2015.
DWORKIN, R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
FREIRE DE SÁ, M. F.; DADALTO, L. Direito e Medicina: a morte digna nos tribunais. São Paulo: Foco, 2018.
MÖLLER, L. L. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá. 2008.
MORATO, O. M. A. Ortotanásia no Brasil: limites éticos e legais. Revista Jus Navigandi, Teresina, v. 24, n. 5868, 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74135. Acesso em: 14 set. 2020.
SANTOS, S. B. Direitos fundamentais e ortotanásia: entre a saúde e a autonomia do paciente terminal. Curitiba, Unibrasil, 2015.
SZTAJN, R. Terminalidade da vida: a ortotanásia e a constitucionalidade da res. CFM 1.805/2006. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 17, n. 66, p. 245-257, 2009.
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