A COEXISTÊNCIA DE PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA À LUZ DA REPERCURSSÃO GERAL Nº 622 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: UMA ANÁLISE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL DE NOVOS PARÂMETROS DESSES INSTITUTOS DO DIREITO DE FAMÍLIA NO SÉCULO XXI
INTRODUÇÃO
Ao longo do século XX, o modelo do que se entendia por “família” sofreu constantes mudanças, mostrando-se cada vez menos convencional. Hodiernamente, as relações familiares muitas vezes são compostas por dois pais e/ou duas mães, ou diversas outras formas, todas a compartilhar uma finalidade em comum: o afeto.Com base nesse afeto, surgiram as famílias conhecidas hoje como “multiparentais”; as quais, por sua vez, necessitam atenção especial por parte do Direito, a fim de manter as garantias constitucionais a esses indivíduos que formam os núcleos familiares.
Nessa perspectiva, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi um marco divisor no ordenamento jurídico ao proteger as mais diversas formas de entidade familiar marcadas pelos laços de afeto. O estudo da multiparentalidade evoluiu significativamente com o reconhecimento jurídico pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Repercussão Geral nº 622, ao admitir a plena possibilidade de coexistência, sem qualquer hierarquia, das relações de afeto concomitantemente à biológica.
Assim sendo, diante à transformadora decisão proferida pelo STF no ano de 2016, a presente pesquisa objetiva abordar essa importante e atual temática da parentalidade coexistir nas formas socioafetiva e biológica.
Para tanto, far-se-á uma breve explanação da evolução do conceito de família com abordagem da definição de família socioafetiva no entendimento de alguns doutrinadores, tendo em consideração a análise dos seus efeitos, extensão e registro, e, por fim, ao estudo da Repercussão Geral nº 622 do STF.
MATERIAL E MÉTODOS
O método empregado para a elaboração deste trabalho foi o dedutivo, utilizando-se da técnica de pesquisa bibliográfica e revisão de literatura sob o formato sistemático.
DESENVOLVIMENTO
Conceituar família mostra-se algo complexo, uma vez que sofre grandes variações no tempo e no espaço. Nesse sentido, família possui uma relação simbiótica com a sociedade, alternando à medida do avanço dos povos e de sua cultura. Nota-se, dessa forma, que a estrutura familiar é uma construção dinâmica, não podendo a lei ficar inerte frente às mudanças.
Na Antiguidade, mais precisamente no Direito Romano, o conceito de família girava em torno de uma figura central masculina, denominada pater, o qual possuía o domínio familiar, haja vista a mulher e os filhos não serem detentores de direitos. Nesse contexto, o grupo familiar era constituído por pessoas ligadas pelo vínculo sanguíneo e oriundas de uma base ancestral comum, sendo posto de lado o vínculo afetivo de seus componentes (LOPES, 2014, p. 02).
Com o passar dos anos, mais precisamente a partir do século XX, o conceito de família sofreu uma evolução substancial, deixando sua concepção tradicional e passando para uma definição mais ampla. A característica comum que passou a prevalecer, tanto nas famílias tradicionais quanto nas novas entidades familiares, foi a união de indivíduos pelos laços afetivos, não mais somente pela consanguinidade (COELHO; MARQUES, 2018, p. 116).À vista disso, Rodrigo Pereira da Cunha salienta:
[...] a família hoje não tem mais seus alicerces na dependência econômica, mas muito mais na cumplicidade e na solidariedade mútua e no afeto existente entre seus membros. O ambiente familiar tornou-se um centro de realização pessoal, tendo a família essa função em detrimento dos antigos papéis econômico, político, religioso e procriacional anteriormente desempenhados pela “instituição” (CUNHA, 2001 apud OLIVEIRA, 2017, p. 23).
A Constituição Federal de 1988 foi uma referência na proteção dos direitos das famílias contemporâneas, pois anteriormente à sua promulgação o conceito de família era taxativo à existência de matrimônio. Assim sendo, com a Carta Magna, houve o reconhecimento da evolução no campo das relações familiares, instituindo a diversidade familiar marcada pelos laços de afeto (COELHO; MARQUES, 2018, p. 117).
A partir disso, surgiu o pluralismo das formas de família, inaugurando-se uma nova figura jurídica, qual seja, a da “multiparentalidade” ou “pluriparentalidade”, compreendida, por sua vez, como a possibilidade de coexistência de mais de um vínculo parental materno e/ou paterno. Nessa perspectiva, Rodrigo Pereira da Cunha conceitua “família multiparental”:
[...] é a família que tem múltiplos pais/mães, isto é, mais de um pai e/ou mais de uma mãe. Geralmente, a multiparentalidade se dá em razão de constituições de novos vínculos conjugais, em que padrastos e madrastas assumem e exercem as funções de pais biológicos e/ou registrais, ou em substituição a eles e também em casos de inseminação artificial com material genético de terceiros. é o mesmo que família pluriparental (CUNHA, 2015 apud COELHO; MARQUES, 2018, p. 117).
Desse modo, a multiparentalidade pressupõe a existência de mais de um pai e/ou de uma mãe, sendo um deles biológico e o/a outro/a socioafetivo/a. Em defluência, tem-se a “parentalidade sociafetiva”, conceituada por Cassettari (2017 apud COELHO; MARQUES, 2018, p. 118) como “o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas”.
Em suma, a multiparentalidade é a materialização do que ocorre no mundo dos fatos dentro do meio jurídico. Isto posto, o Direito, como guardião das relações sociais, deve ser ater às mudanças advindas das relações familiares e as regular, de modo a atender as expectativas jurídicas de uma sociedade multifacetada (CARDOSO; GAUER, 2019, p. 658).
DISCUSSÃO
Adotando um modelo descentralizado trazido pela Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002, em seu art. 1593, estabeleceu três modalidades de parentesco, sendo elas: de ordem natural, quando envolve consanguinidade; por afinidade, decorrente de casamento e união estável; e civil, quando resulta de adoção. Entretanto, a doutrina encontrou precedentes de que possa a jurisprudência interpretar tal artigo de forma mais ampla, incluindo, por sua vez, o parentesco socioafetivo (CARDOSO; GAUER, 2019, p. 643).
A posse de estado de filho é um dos fatos geradores da parentalidade socioafetiva e se traduz como “uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação diante de terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai” (BOEIRA, 1999 apud COELHO; MARQUES, 2019, p. 119). Nessa toada, caso instituída a relação parental por meio da afetividade, tornam-se detentores de direitos os filhos socioafetivos, igualmente aos filhos biológicos, consoante Enunciado nº 6 IBDFAM.
Outrossim, o reconhecimento da parentalidade sociafetiva tem extensão em outros assuntos, como, por exemplo, alterando a “ordem” da árvore genealógica, gerando novos ascendentes e colaterais; bem como na obrigação de prestar alimentos, de acordo com o Enunciado nº 341 do CJF. Além disso, estende-se também para fins de registro civil, o qual, de acordo com o Provimento 63/2017 do CNJ, é permitido seu reconhecimento na forma extrajudicial, bastando o interessado, que não pode ser ascendente ou irmão, maior de 18 anos e 16 anos mais velho que o filho que se pretende registrar, comparecer ao Cartório de Registro de Pessoas Naturais, na posse dos documentos pessoais e da concordância dos genitores, se menor (CARDOSO; GAUER, 2019, p. 648-657).
Destarte, a multiparentalidade socioafetiva evoluiu significativamente com o reconhecimento jurídico pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Repercussão Geral (tema 622), da plena possibilidade de coexistência, sem qualquer hierarquia, das parentalidades biológica e socioafetiva. No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 898.060/SP, afetado sob a sistemática de Repercussão Geral, na forma do art. 102, §3º, da Carta Magna, o Plenário do Órgão de Cúpula reconheceu a afetividade como juridicamente relevante para fins de comprovação da paternidade social, concebendo a seguinte ementa:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA [...].PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE [...] (Supremo Tribunal Federal. Acórdão proferido em RE 898.060. Ministro Luiz Fux.Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgado em 22 set. 2016). – GRIFOS NOSSOS
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, Min. Luiz Fux, fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais” (BRASIL, 2016, p. 05).
Nesse cenário, o STF admitiu que o direito ao reconhecimento da paternidade sociafetiva, à míngua de previsão legal infraconstitucional específica, decorre da aplicação de princípios fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88), da paternidade responsável (art. 227, §6º, CRFB/88) e do direito à busca pela felicidade (inerente à dignidade da pessoa humana).
Essa pluralidade de vínculos, nada mais é do que uma complexidade das relações interpessoais que o ordenamento legislativo ainda não abarcou. Nesse mister, deve o Direito se adaptar, pois tanto a dignidade da pessoa humana quanto o direito pela busca da felicidade assumem papéis importantes no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais. Com a igualdade hierárquica das formas de filiação e a manutenção de ambas (biológica e socioafetiva), há a garantia da própria essência humana e dos direitos fundamentais (OKAMA, 2018, p. 65-69).
CONCLUSÃO
A concepção de família sofreu, ao longo dos anos, significativas mudanças, desprendendo-se do obsoleto conceito de vínculo biológico. Com o advento da Constituição Federal de 1988, passou-se a considerar o afeto e a construção de relações familiares com apoio mútuo, respeito e igualdade. Nessa perspectiva, foi admitida a parentalidade socioafetiva a partir da formação de núcleos afetivos e não somente biológicos.
Com apoio de princípios norteadores do direito, a socioafetividade mostra-se cada vez mais presente no cotidiano, reconhecida, inclusive, em sede de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal. A referida decisão demonstra a inclusão de novas formas de se constituir uma família, permitindo a coexistência de ambos os vínculos, sem a necessidade exclusão de um deles. À vista disso, são garantidos aos filhos socioafetivos direitos sucessórios e alimentar, bem como a inclusão em registro da nova filiação, concomitante à biológica; respeitando-se, com isso, os princípios da igualdade, integridade, liberdade de escolha e dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 898.060/SP. Recorrente: A.N. Recorrido: F.G. Rel. Min. Luiz Fux. Brasília, DF, 22 set. 2016. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf>. Acesso em: 22 set. 2020.
CARDOSO, Ana Lucia Brunetta; GAUER, Raphaela. Parentalidade socioafetiva: estudo de caso. In: Revista do Curso de Direito do Centro Universitário Metodista – IPA, v. 04, n. 1, 2019. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ipa/index.php/direito/article/view/780>. Acesso em: 21 set. 2020.
COELHO, Alexs Gonçalves; MARQUES, Vinicius Pinheiro. Multiparentalidade e paternidade socioafetiva: breves apontamentos à luz da doutrina civilista e da jurisprudência brasileira. In: Revista do Ministério Público do Estado de Goiás (versão eletrônica), Goiânia, edição nº 36, p. 113-126, jul./dez. 2018. Disponível em:<http://www.mp.go.gov.br/revista/pdfs_36/6artigoAlexsGoncalves_Layout_1.pdf>. Acesso em: 21 set. 2020.
LOPES, Paula Ferla. A paternidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro. 34f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 24 jun. 2014. Disponível em: <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/paula_lopes.pdf>. Acesso em: 21 set. 2020.
OKAMA, Larissa. Multiparentalidade e o direito à busca da felicidade: efeitos da repercussão geral nº 622 do STF. 86f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Centro Universitário Curitiba, Curitiba, 2018. Disponível em: <https://www.unicuritiba.edu.br/images/tcc/2018/dir/LARISSA-OKUMA.pdf>. Acesso em: 23 set. 2020.
OLIVEIRA, Thamy Isabela Euzébio de. Apadrinhamento afetivo. 51f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Fundação Educacional do Município de Assis – FEMA, Assis, 2017. Disponível em: <https://cepein.femanet.com.br/BDigital/arqTccs/1411400851.pdf>. Acesso em: 21 set. 2020.
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