Aprendizagem e educação da atenção nas religiões de matriz aficana

  • Autor
  • Taisa Domiciano Castanha
  • Resumo
  • O tema da aprendizagem de elementos culturais nas Ciências Sociais, apesar de ser uma questão intrigante, não é objeto de análise primordial dessa área de estudo. Tal como colocado por Pierrot, “na maioria das etnografias, as situações de aprendizagem, quando não estão simplesmente ausentes, são geralmente mencionadas somente de modo sucinto” (2015: 49). Cultura e aprendizagem são temáticas que interligam vários campos do saber e são antigos objetos de investigação de variadas disciplinas. Sobretudo a Pedagogia, a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia, desde às suas gêneses, se depararam com questões semelhantes: como ocorre a transmissão cultural? Como a socialização é feita? Como o conhecimento é apreendido e passado de geração à geração? Como se dá o processo de aprendizagem?

    Tentando dialogar com essas questões, este texto tem como objetivo investigar os processos de aprendizagem envolvidos nas religiões afro-brasileiras, as quais se formaram no Brasil pela influência de tradições africanas diversas, vinda com os escravos, e que se mostra como um manancial de fenômenos educativos: alí deve-se aprender a cantar e a dançar para os Orixás e para as entidades, a fazer as comidas específicas para cada situação, as ervas e folhas de cada banho ritual, a linguagem ritual – a qual nomeia várias coisas, objetos, cargos e também pessoas –, a forma de se portar e de pedir a benção, a lavar, passar e engomar roupas, além da educação dos sentidos – do olfato, do tato, da visão, da audição e do paladar – e da própria possessão.

    Além dessa gama de fenômenos educativos, nas religiões afro-brasileiras há uma forma peculiar pela qual o processo de aprendizagem é feito: para aprender é preciso tempo e engajamento nas atividades práticas cotidianas do terreiro. O aprendizado segue a hierarquia e o aprender está diluído nas atividades corriqueiras. Para se tornar um filho de santo experiente, está implicado o compartilhamento de ações e percepções cotidianas que revelam a articulação de diferentes atores humanos e não-humanos, envolve destreza técnica e a centralidade do uso do corpo.

    Tendo em vista que os fenômenos educativos, bem como os processos de aprendizagem nas religiões de matriz africana são peculiares e independentes das tradicionais estruturações pedagógicas, o problema deste texto se baseia na seguinte questão: como, afinal, essa gama de elementos culturais-religiosos dos terreiros – como as danças, as cantigas, a linguagem ritual, o preparo das comidas, a própria possessão, etc – são aprendidos, uma vez que não há um momento pedagógico específico para este ensino? Busca-se através de um diálogo com a teoria do antropólogo Tim Ingold e com o seu conceito de educação da atenção (2008, 2010) refletir sobre o processo de aprendizagem nas religiões afro-brasileiras.

    No livro “The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill” (2000), Ingold apresenta em 23 capítulos as bases de uma ambiciosa proposta teórica para a antropologia, na tentativa de superar a clássica dicotomia entre natureza e cultura, com a rúbrica de uma abordagem ecológica. De acordo com o paradigma ecológico de Ingold, o conceito de cultura é entendido enquanto uma habilidade (skill) e a aprendizagem é vista como educação da atenção. Opondo-se à ciência cognitiva clássica, cujo pressuposto é que conhecimento é igual a informação processada por seres humanos, Ingold pontua que o conhecimento humano consiste em habilidades, as quais os seres humanos, em um campo de prática, percebem e agem. Habilidades são emergências de sistemas dinâmicos e é através da habilitação que o conhecimento é passado pelas gerações, sobretudo pela educação da atenção. Dessa forma, Ingold relativiza a oposição entre mecanismos cognitivos inatos e conteúdo cultural adquirido, e advoga que as capacidades dos seres humanos são frutos de processos de desenvolvimento. O argumento de Ingold é que o ambiente não é uma fonte variável para os mecanismos cognitivos pré-estabelecidos, mas fornece condições variáveis para a auto-montagem, ao longo do desenvolvimento, para os mecanismos. E como as condições variam, os mecanismos resultantes também variam, afinando-se de acordo com o ambiente. Dessa forma, o conhecimento não é adquirido, nem ocorre a transferência de conteúdo; o conhecimento é gerado e regerado continuamente nos contextos desenvolvimentais de envolvimento. Com essa ideia, Ingold dissocia o inato e o adquirido (Ingold, 2010).

    Ingold também discute os conceitos de capacidade e competência, apontando que essas noções tratam de desempenho. Nesse ponto, a abordagem ecológica se explicita, uma vez que o desempenho de uma atividade é uma realização do organismo/pessoa por inteiro em um ambiente, e não uma descarga de representações na mente. O pressuposto básico da abordagem ecológica é que a cognoscibilidade humana está baseada não em combinações entre capacidades inatas e competências adquiridas, mas em habilidades. Diferentemente do que a ciências cognitiva prega – de que o desempenho competente deriva de uma excecução mecânica de um plano pré-determinado –, de acordo com o processo de habilitação o movimento do praticante habilidoso responde continuamente a perturbações do ambiente percebido, justamente porque o movimento corporal do praticante é um movimento de atenção. Dessa forma, Ingold afirma que “a habilidade é a base de todo conhecimento” (2010: 18), no sentido de que conhecimento não é resultado de transmissão de informação, mas sim de redescoberta orientada, e, portanto, o conhecimento está baseado em habilidade. O papel do ambiente na perspectiva de Ingold não é uma fonte de problemas e desafios adaptativos a serem resolvidos; ele se torna parte dos meios de lidar com isso. Portanto, para Ingold, qualquer aprendizado humano faz parte do envolvimento prático do iniciante com seu ambiente, ao contrário do que pregam as teorias cognitivas, para as quais a aprendizagem se dá pelos mecanismos cognitivos que processam os inputs num conjunto de representações na mente.

    Essa reflexão faz parte da minha incipiente pesquisa de doutorado, realizada no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (Pós-Afro/UFBa).

     

  • Palavras-chave
  • Religiões afro-brasileiras; educação da atenção
  • Modalidade
  • Comunicação oral
  • Área Temática
  • 11. Educação, diversidade e relação Étnico-Raciais
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