Introdução
Os processos de transformação institucional em saúde, associados ao movimento antimanicomial, se sustentaram, historicamente, pela participação de artistas e pelo incentivo de processos criativos para produzir mudanças cotidianamente. Os países onde estas práticas são socializadas, em seus diferentes contextos, servem como referências significativas para termos presente tanto seus acertos como suas limitações, em um exercício de crítica construtiva.
A transformação social da saúde é, assim, uma construção histórica, e nos seus modos de consciência social, tem sido necessária a reflexão e a problematização das lógicas unidimensionais, hegemônicas e coloniais impostas pelo capitalismo, por meio da indústria farmacêutica dominante, e, mais ainda, quando o corpo vivo se converteu no seu principal objeto de controle social e a base da mercantilização da vida e da saúde.
Diante deste cenário, na Venezuela, um grupo de pesquisadoras e docentes da Universidad Nacional Experimental de las Artes (UNEARTE), em conjunto com o movimento social Crearte Salud e com a Associaç?o Rede Unida, impulsionamos, desde 2020, o projeto Cirandas del Sur, com a finalidade de mobilizar apoios para a criação do Núcleo Internacional de Pesquisa e Estudos em Arte e Saúde Coletiva, que nos permitirá consolidar uma importante rede colaborativa: Universidade de Parma (Italia), Universidad Nacional de Costa Rica, Universidad Nacional de las Artes (Argentina), Universidad de Barcelona, Universidade Federal Fluminense, Universidade Estadual de Londrina, Universidade Federal de S?o Paulo (UNIFESP), UNIVASF, UFRGS, entre outras universidades do Brasil.
Este núcleo é para atender as necessidades sociais, a partir da perspectiva dos direitos e com uma mobilização social ativa, que inclui a participação e a liderança de artistas, criadores e cultivadores, sob o lema: “para além das fronteiras”, e convida a divulgar os poderes criativos e resolutivos dos Povos.
Objetivo
O nosso relato de experiências é uma narrativa cheia de desejos, sonhos coletivos e esforços cotidianos para conseguir institucionalizar este primeiro Núcleo na Venezuela, cujo objetivo é fortalecer os mecanismos de intercâmbio e colaboração internacional, nacional e local, com a participação de trabalhadores da UNEARTE e do movimento social Crearte Salud de diversas regiões, fortalecendo estratégias de acompanhamento e de assessoria profissional de diferentes países e áreas do conhecimento, em diálogo com as artes e as ciências da saúde.
Contexto e descrição
Na Venezuela, estas narrativas e experiências continuam sendo pouco valorizadas quando as políticas públicas são definidas, assim como constatamos com o que aconteceu durante a pandemia da COVID-19, quando vimos como os esforços estavam concentrados nas campanhas de vacinação, subestimando a complexidade social e emocional da situação, que acarretou o confinamento das pessoas por períodos prolongados e a aplicação de medidas severas de biossegurança.
Foram investidos recursos consideráveis em vacinação, deixando de lado as ações dos movimentos sociais, que estavam contendo e fomentando importantes redes de apoio. Esse foi o caso dos diversos Encontros Internacionais CIRANDAS DEL SUR que surgiram, justamente, para dar visibilidade e oferecer apoio, pelas artes e pelos saberes populares, às necessidades de saúde mental que esta crise colocou em emergência.
Sustentamos a ideia de que os processos criativos não são exclusividade dos artistas, e sim uma potência vital de todos os seres humanos, na qual a expressão de emoções e a transformação das realidades possibilitam a resolução de crises e mal-estares. A arte oferece alternativas de ação para o acontecer diário, partindo de que os sujeitos são criativos, corresponsáveis e atores ativos na prevenção e na atenção às doenças, como as que foram produzidas pela COVID-19.
Durante os últimos 10 anos, a falta de tranquilidade, o temor e o desassossego se fizeram cotidianos para as venezuelanas e os venezuelanos, já que a pandemia chegou justo quando o nosso país transitou e transita por uma crise política, social e econômica sem precedentes, gerando um deslocamento forçado de um número estimado de 7 milhões de pessoas a diversos países, sendo o Brasil e a Colômbia, os territórios com maior migração, por serem países fronteiriços com a Venezuela.
Como consequência, respondendo ao momento histórico delicado pelo qual atravessa a sociedade venezuelana, legitimamos a necessidade de ações que reconheçam os sujeitos sociais como atores protagonistas, dando visibilidade para as suas condições de vida, assim como para a sua potência de autonomia, em termos de integridade física, psíquica, espiritual, social, econômica e política. Com as artes, a incerteza e a falta de tranquilidade se convertem em cenários privilegiados de processos de criação e canais de expressão de angústias insustentáveis, para que, em meio à crise, possamos ir além das realidades concretas e transformá-las.
A institucionalização dos Núcleos de pesquisa e estudos em arte e saúde coletiva permitirá a mobilização de recursos para dar continuidade ao trabalho voluntário que vem sendo realizado e fomentar o debate conceitual/metodológico, promovendo transformações nos significados e nas subjetividades, com vistas à melhora dos indicadores de morbimortalidade, que vai além do acesso aos medicamentos e o autocuidado.
Resultados e considerações finais
Conseguimos formar um primeiro Núcleo, em que participam universitários das cidades de: Caracas, Nueva Esparta, Guárico, Zulia, Aragua. Cirandas del Sur, para os próximos anos, foi concebido tendo, como ponto de partida, a inserção de artistas, criadores y criadoras das Áreas de Salud Integral Comunitarias (ASIC) e a posse da arte e dos socio-cuidados em saúde mental com uma narrativa contracolonial, que considera a inseparabilidade entre formar/produzir cuidado e a ação política transformadora em todas as cotidianidades.
Fortalecer os processos de produção de saberes, que vem sendo colocados em torno deste esforço, implica consolidar estratégias de cooperação universitária para realizar um Curso Internacional de Formação Avançada e Educação, Arte e Saúde Coletiva. Neste sentido, queremos realizá-lo em parceria com a Rede Unida e queremos contar com o apoio da Rede das Ciências da Saúde da Lusofonia.
A produção e a criação de saberes entre os nossos países, trará protagonismo às narrativas criativas e emancipatórias. Isto inclui os saberes populares, os saberes ancestrais, as práticas integrativas e as psicoterapias expressivas e criativas, que já dão respostas efetivas no âmbito da saúde, contribuindo para a superação do discurso biomédico e com ampla participação social em defesa da cultura de paz.