Há 80 anos, o mundo se emociona com a estreia de duas obras cinematográficas: E o vento levou e O mágico de Oz. Os memoráveis filmes, além da direção de Victor Flemming compartilham outra participação importante: a do compositor Max Steiner, quer na escrita da trilha de abertura, quer no arranjo de canções. Tanto o tema de Tara, quanto Além do arco-íris (Over the rainbow) ainda permanecem como clássicos do repertório de artistas contemporâneos, ocupando a paisagem sonora e memorial de geração a geração.
Vinte anos antes, em plena I Guerra Mundial, Darius Milhaud chega ao Rio de Janeiro em missão diplomática. O contato com o país faz com que sua música incorpore paisagens sonoras e musicais: não apenas adota gêneros locais, como tango, samba, maxixe, bem como também se vale de trechos de peças conhecidas, que aparecem em forma de citação, fruto da escuta praticada de todo tipo de música, nos concertos, nos saraus, na rua... Saudades do Brasil, uma suíte de doze peças para piano completa seu centenário e, coincidentemente, evoca algo de muito caro aos estudos da música em suas diversas interfaces: Ao empregar essa técnica composicional, Milhaud não apenas inscreve em seu repertório a paisagem musical do Brasil em que viveu. Mais que isso, ao citar trechos de peças pré-existentes, transforma em memória “aquele tempo”, parar além da própria estética musical que criou (a politonalidade). Muito provavelmente esta não era a intenção do compositor, mas assim resultou...
Boa parte da obra de Milhaud constitui memória da música, pela música. Mas há outras maneiras de fazê-lo. Se Over the rainbow pode ser escutada repetidamente na voz de Judy Garland, nas mais diferentes plataformas midiáticas, até o fim do século XIX não havia outra forma de conservá-la senão pela escrita (partituras). A possibilidade de registro sonoro permitiu a criação de coleções, acervos, passíveis de ser armazenados e catalogados. A criação de acervos e fontes documentais é resultado de iniciativas pessoais ou institucionais e, para que sejam mantidas, políticas públicas são prioritárias – o que lhes garante a sua conservação e continuidade dos trabalhos de classificação e arquivamento. Nesse ponto, a informática vem impulsionar o relevante trabalho desenvolvido pela ciência da informação, com a disseminação das plataformas digitais. Em contrapartida, quando assumida por sistemas menos rígidos, resulta em repercussões importantes. O afrouxamento no critério de classificação ou a presença tímida de especialistas faz com que Spotify, Deezer e outras empresas passem a oferecer obras em turbilhões, via on-line, organizadas, não raro de forma incompleta ou mesmo despropositada. E, em outro sentido, o surgimento de canais como o Youtube permitem o acesso a materiais até então inatingíveis ou desconhecidos.
Neste ponto, cabe indagar: como as músicas absorvidas por essas plataformas poderão ser reconhecidas ou encontradas? Existem interesses, mecanismos e ações no sentido de garantir a incorporação de um amplo repertório aos acervos, sobretudo se considerando a efemeridade das plataformas midiáticas e formatos dos dispositivos reprodutores?
Não menos inquietante é a relação que se estabelece entre arquivo e memória: além da constante mudança de tecnologias, obedecendo a interesses voltados às demandas do capitalismo, há imperativos de natureza cultural: cultura é memória que, por sua vez, implica em seleção. Conforme apontam os teóricos da Escola de Tártu, a dinâmica da memória se processa em movimento de permanência e descarte: as culturas se lembram esquecendo... Mas tendem, de outra parte, a gerar novos textos, a partir de processos de ressignificação dos pré-existentes.
Sob outro aspecto, podemos destacar também a subjetividade da memória musical, seja ela individual ou coletiva: há obras se estabelecem como lugares de memória, marcando acontecimentos pontuais ou periodizados, estabelecendo vínculos com fatos da vida coletiva ou individual. A importância, a força dos dos signos (musicais) da memória pode interferir na sua duração dos lugares de memória.
Por fim, mecanismos de natureza orgânica determinam a configuração da memória. Aqui, as formas de sensibilidade variam mediante estímulos (ou a ausência destes), fundamentados num sistema (neuro)biológico. Aqui não se pode deixar de ressaltar sua importância na conformação da memória do compositor, que se inscreve a partir de experiências auditivas desde a infância, a memória que o músico desenvolve (estilos interpretativos, modelos performáticos etc.), assim como a memória dos ouvintes que, por sua vez, também é constituída por um universo de escuta adquirido ao longo da vida.
O 15º Encontro pretende, assim, trazer à discussão as relações entre memória e música. Memória, como mecanismo de armazenamento e fixação, mas também de descarte, ressignificação e geração de novos textos; memória como atividade do organismo, que oscila e cria processos semânticos mediante estímulos diversos; memória como forma de registro e suas técnicas específicas de conservação. Também o papel das políticas e instituições que atuam com o objetivo de conservar o repertório musical de todos os tempos se encontram no centro das discussões, aqui propostas.
Neste ano, o MusiMid conta com a participação dos professores-doutores Ana Guiomar Rêgo Souza (UFG), Barbara Heller (UNIP), Herom Vargas (Metodista), Magda Clímaco (UFG), Márcia Ramos de Oliveira (UDESC), Mônica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM), Priscilla Perazzo (USCS) como interlocutores, com o objetivo de explorar as diversas maneiras de entender a memória no seu aspecto orgânico e suas reverberações nas formas de sensibilidade e criação estética, como também nas formas de sociabilidade. Para tanto, os debates estruturam-se em três eixos temáticos:
Eixo Temático 1: Acervos, banco de dados, coleções:
As políticas de seleção, organização e configuração dos bancos de dados. O papel dos atores sociais: instituições governamentais e não-governamentais na salvaguarda e conservação. Descartes e desmanches de acervos e coleções. O papel do esquecimento.
Eixo Temático 2: Um grande acervo universal? Lembrados e esquecidos.
Nem tudo que existe é guardado como arquivo, como memória. Há escolhas que determinam a permanência ou esquecimento, orientando processos de ressignificação. Plataformas como Spotify e o Deezer não implicam na transferência de todas as obras. Ademais, a transferência de materiais fonográficos deixou de trazer consigo as informações sobre a gravação original
Eixo Temático 3: Memória e a música
Processos de memória e esquecimento entendidas sob o aspecto biológico e neurobiológico (da cogniçãoa estímulos de natureza sensorial e emotiva como traumas etc.); as operações cognitivas que entram em cena na fixação dememórias: subjetividades; afetividades; poderes de vínculo; vermes musicais; alucinações e estados alterados de consciência; a memória musical do músico e do ouvinte e suas formas de configuração.
Gustavo Silva de Oliveira, Simonny Montthieln Araújo Vasconcelo, Adriano Jakelaitism, Leando Spindola Pereira, Gustava Dorneles de Souza
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Comissão Científica
Ana Guiomar Rego
Eliana Monteiro da Silva
Fabiana Coelho
Juliano Oliveira
Lina Noronha
Lucimara Rett
Magda Clímaco
Marcos Júlio Sergl
Monica Rebecca Ferrari
Márcia Carvalho
Priscila Perazzo
Rafael Righini
Sandro Figueiredo
Yuri Behr