As ritxoko, conhecidas como bonecas Karajá, são esculturas cerâmicas maciças tradicionalmente moldadas à mão pelas mulheres do povo Iny-Karajá. Mais do que brinquedos infantis, essas figuras representam elementos significativos da memória, cosmologia e identidade visual Karajá. O acervo do Setor de Etnologia e Etnografia (SEE) do Museu Nacional preservava exemplares de diferentes períodos, cuja documentação etnográfica foi realizada por pesquisadoras como Maria Heloisa Fénelon Costa (1978) e Chang Whan (2010).
Em 2 de setembro de 2018, o trágico incêndio do Museu Nacional resultou na perda de parte considerável de seu acervo. Em resposta, foi criado o Núcleo de Resgate, que atuou durante 500 dias na recuperação e salvamento arqueológico das peças remanescentes. Posteriormente, essas peças foram redistribuídas aos setores originais, onde vêm sendo organizadas, catalogadas e estudadas. A presente pesquisa está inserida nesse contexto e busca contribuir para o reconhecimento e preservação das ritxoko atingidas pelo incêndio a partir de ensaios que permitam a comparação e identificação dos danos.
O objetivo da presente pesquisa é mapear as alterações físicas da camada pictórica das Ritxoko, usualmente chamadas de Bonecas Karajá, do Museu Nacional que sofreram danos em função do incêndio de setembro de 2018.
A pesquisa parte de uma análise comparativa entre os exemplares da coleção Resgate do SEE e as documentações realizadas por Chang Whan (2010) e Maria Heloisa Fénelon Costa (1978). Foram utilizados registros fotográficos, descrições técnicas e informações etnográficas sobre o preparo das peças, incluindo os materiais usados na modelagem e pintura.
A segunda etapa consistirá na reprodução experimental das ritxoko, utilizando argila da Ilha do Bananal (TO), coletada pelo antropólogo Rafael Santana. A massa será preparada com adição de cinza de galhos (mawuxide), seguindo as proporções descritas por Whan (2010). As tintas serão reproduzidas com pigmentos naturais de jenipapo, urucum e barro vermelho. Os corpos-de-prova cerâmicos produzidos para os ensaios, serão submetidos a queimas controladas e não controladas para simular os efeitos do incêndio sobre os pigmentos, permitindo a observação direta das alterações cromáticas e morfológicas.
As análises indicam que, ao longo do século XX, as ritxoko passaram por mudanças formais significativas. As peças anteriores à década de 1950 tendem a ser menores, com traços simplificados e pigmentação natural. Em contraste, as peças mais recentes apresentam braços esculpidos em argila, maior detalhamento facial e posturas mais dinâmicas (WHAN, 2010, p. 119). A incorporação de novos temas e formas está associada a um processo de adaptação cultural e inserção das ceramistas no mercado de arte e artesanato (WHAN, 2010, p. 179).
No acervo do Museu Nacional, essa diversidade estética características de suas transformações culturais foi comprometida com a dissociação das peças após o incêndio. Os ensaios cerâmicos realizados permitirão identificar os tipos de pigmentos mais suscetíveis à queima: o jenipapo escurece de forma intensa e o urucum tende a desaparecer sob altas temperaturas. Essas informações auxiliaram na identificação de fragmentos recuperados e contribuíram para o trabalho de reconhecimento das peças. Paralelamente, a equipe do SEE, juntamente com estagiárias e bolsistas, desenvolveu um sistema de planilhas com fotografias, registros das caixas, observações e identificação preliminar de materiais. A etapa de individualização envolveu atribuição de número de tombo, higienização mecânica com trincha, acondicionamento com saco de polietileno de baixa densidade com fechamento hermético, espuma de polietileno expandida de célula fechada, registro das dimensões das peças e fragmentos, pesagem e registro fotográfico, cujo levantamento está sendo usado na pesquisa.
A pesquisa evidenciou o papel das ritxoko como objetos cerâmicos que incorporam saberes técnicos e valores culturais do povo Karajá, constituindo-se como expressões visuais de sua identidade feminina e coletiva. O mapeamento das alterações físicas pós-incêndio, aliado aos dados etnográficos e experimentação prática, permite o avanço nos processos de identificação e reconhecimento das peças do acervo. A continuidade do trabalho de catalogação e conservação é essencial para assegurar a integridade desse patrimônio e fomentar o diálogo entre museu, universidade e comunidades indígenas.
COSTA, Maria Heloisa Fénelon. A arte e o artista na sociedade Karajá. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1978.
WHAN, Chang. Ritxoko: a voz visual das ceramistas Karajá. 2010. Tese (Doutorado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.