Essa narrativa diz respeito ao projeto de pesquisa em doutoramento no Programa de Pós- Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, na interface com as discussões oriundas da pesquisa nacional "Práticas e saberes que vêm das margens: encontros e desencontros com a atenção e a formação em saúde". Descrevemos um pouco do nosso percurso pesquisador orientado na investigação da clínica a partir do encontro com corpos nômades, àqueles que vivem das/nas ruas no qual nos convida uma segunda questão, não menos importante: que clínica necessária nos convoca esses corpos?
Utilizamos a pesquisa bibliográfica e o texto Em Busca da Clínica dos Afetos (Franco & Galavote, 2010) como guia nesse processo pensante produzindo articulações com outros pensadores nas discussões. Partindo de uma atitude de produzir reflexões sobre corpo e clínica, ou a clínica do encontro de corpos, utilizaremos nesse trabalho um pouco das inquietações produzidas em nós na medida em que avançamos nas trocas.
Partimos da análise sobre a transformação histórica na concepção de cuidado e de corpo, especialmente a partir da medicina ocidental moderna. Franco & Galavote (2010) destacam que, antes da medicina científica, o cuidado era um saber coletivo, transmitido entre gerações. Com base em Foucault (2003), enxergamos o "corpo anátomo-clínico", que representa a medicalização e privatização do corpo, desconsiderando o sujeito que o habita. Rolnik (2006) critica esse "olhar retina", que enxerga apenas o corpo físico, e propõe a ideia de um corpo vibrátil, sensível e afetado por presenças vivas. Denuncia as formas como o capitalismo bloqueia essa sensibilidade, impondo modos de subjetivação que dificultam a relação autêntica com o outro. Inspirada por essa visão, a autora propõe uma busca por novos significados para o corpo, indo além do visível e do normativo, em direção a corpos plurais, históricos e sociais – como os corpos-rua, marcados por questões raciais, de classe e de processos de exclusão. Abrindo fendas nas nossas práticas e reflexões, convidamos para essa conversa a perspectiva ampliada da visão de dos povos indígenas do Alto Rio Negro (BARRETO, 2022), que veem o corpo constituídao por forças vitais como kahtise e nirowe, expressando uma ligação viva entre o corpo e os elementos naturais, não sendo possível pensar o copro fora da natureza. Essa visão decolonial propõe um entendimento mais amplo e sensível do que é o corpo. Dessa compreensão, inventamos a possibilidade do corpo como "unidade-cósmica" (FRANCO, 2024). Afetado, produzido e compreendido na sua relação com tudo que interaje, a natureza por exemplo.
Nossa consideração final diz muito mais sobre um percurso inicial, que nos possibilita refletir sobre o lugar da ciência, sobre as práticas de pesquisa. Estabelece em nossas discussões a possibilidade de considerar esse momento de reunião de pensamentos que antecedem a pesquisa de campo como um grande preparo. Reconhecendo ampliação do entendimento de corpo, para novas possibilidades para o cuidado. Numa atitude que num mesmo giro fortalece o reconhecimento da vivência desses corpos narrado pelos próprios numa expansão de outras possibilidades para o cuidado. Numa tessitura decolonial que percebe ou busca novos sensíveis do outro e do encontro experimentados por forças vivas que sejam capazes de produzir ruídos nas biopolíticas que insistem em regular a vida e os processos de subjetivação. Entre as reverberações em nossos corpos ressaltamos o paradoxo entre controle e potência vital. Guiados na premissa: a partir dos encontros corporais, o que está sendo produzido de clínico nessas interações?