O estado de São Paulo é um dos maiores produtores de commodities (açúcar, etanol, suco de laranja, café etc) do país. Há duas décadas, o modelo de produção agrícola implantado é caracterizado por um processo que possui duas faces: a) o desenvolvimento acelerado da modernização, por meio do emprego maciço de tecnologias avançadas, cujo resultado tem sido a dispensa de centenas de milhares de trabalhadores/as; b) o apagamento da memória laboral. Objetiva-se tecer algumas reflexões acerca da produção de um repositório digital, contendo a memória de trabalhadores/as rurais. Este repositório é constituído pelo acervo de mais de mil horas de entrevistas com migrantes, homens e mulheres do Vale do Jequitinhonha, Paraíba, Maranhão, Piauí, além de vários municípios do estado de São Paulo, e também com sitiantes e assentados rurais. As entrevistas ocorreram no espaço das últimas quatro décadas. A mecanização do corte manual ceifou as contratações, sobretudo dos migrantes, homens em sua grande maioria. Assiste-se a uma verdadeira diáspora nesses últimos anos nos campos paulistas. O mundo visível é o das commodities. Nos subterrâneos desse mundo foram sepultadas as memórias, as experiências de milhares de homens e mulheres, negros, pardos, mestiços, pobres. Com o intuito de escovar a história a contrapelo, a partir dos ensinamentos de W. Benjamin (1987) de retirar as camadas que silenciaram as vozes desses subalternos e ir na contramão de um verdadeiro memoricídio, foi surgindo, pouco a pouco, a ideia/propósito de produzir um repositório digital, um lugar que fosse capaz de abrigar a memória coletiva, capaz de ressurgir dos subterrâneos dessas plantações. Nos termos de Pollak (1989, 1992), uma memória subterrânea. As máquinas, advindas do gigantesco desenvolvimento tecnológico, apagaram seus rastros. O repositório representa uma forma de ir na contramão da desmemória ou, até mesmo, do memoricídio (BEIGUELMAN, 2019, p. 216)
O imperativo das medidas de distanciamento social desde o ano de 2020, a partir da eclosão da pandemia da Covid-19, recolocou para o campo da história oral uma ampla pauta de reflexões que envolve as relações entre a produção de conhecimento narrativo e participativo e o corpo. Formulada como um encontro intersubjetivo entre interlocutores dotados de propósitos, repertórios culturais, marcas identitárias e saberes distintos – portanto como uma experiência que ganha relevo e significado na diferença – a entrevista de história oral foi reavivada como um encontro que é também intercorpóreo.
De um lado, recorrer a ambientes virtuais de diálogo e realizar entrevistas à distância pode ter redefinido alguns dos parâmetros da prática consolidada de história oral. De outro, porém, instituiu também uma espécie de “saudade do corpo”, enfim revalorizado como elemento central na constituição dos sujeitos históricos e das relações sociais. Se as bases conceituais sempre caras à história oral – a memória, a narrativa, o diálogo – insinuavam timidamente a presença do corpo, o conceito que o traz para a frente da cena – o de performance – merece agora maior investimento e presentificação.
O 15º Encontro Regional Sudeste de História Oral: Memória, corpo, mundo, promovido pela Regional Sudeste da Associação Brasileira de História Oral e sediado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP no mês de junho de 2023, convida toda a comunidade de história oral a se engajar em uma reflexão coletiva sobre o mais concreto, mas não por isso o mais decifrável, de nossos instrumentos de trabalho: o corpo, familiar e estranho, finito e prenhe de possibilidades criativas e interpretativas. Superando o mero exame da linguagem corporal em situações de diálogo, a percepção do corpo instaura uma pauta de questões cuja abordagem é inadiável.
Quais as contribuições oferecidas pelos pesquisadores de história oral e memória aos estudos sobre o corpo, e vice-versa? Como o corpo e a performance têm sido explorados em práticas de pesquisa em história oral, ou como eles podem funcionar como disparadores para novas interpretações para pesquisas já realizadas? De que forma o engajamento da história oral com grupos minoritários atualiza-se diante de corpos considerados fora do padrão? Como podem as narrativas pessoais expressar, hackear e questionar os mecanismos de controle, educação e gestão dos corpos? Como podem os arquivos de história oral – entidades protéticas, que insinuam a própria ausência do corpo, ao tomar seu lugar – melhor refletir e transmitir a experiência viva do encontro? De que maneira as artes performáticas – a dança, o teatro, a música, a performance – têm não apenas investigado narrativamente as experiências dos sujeitos históricos, mas proposto coreografias corporais para compartilhá-las? Motivados por essas questões, os textos apresentados pelos participantes do evento são reunidos nesta publicação eletrônica.
Publicação: Associação Brasileira de História Oral | Local: São Paulo | Ano: 2023 | ISBN: 978-65-00408-39-3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
___
S234m
Encontro Regional Sudeste de História Oral (15. : 2023 : São Paulo, SP).
Memória Corpo Mundo [recurso eletrônico] : Anais do 15º Encontro Regional Sudeste de História Oral / [coordenação] Ricardo Santhiago - -- São Paulo, SP : Associação Brasileira de História Oral, 2023.
Disponível em: https://doity.com.br/anais/memoriacorpomundo
Vários autores.
ISBN: 978-65-00408-39-3
1. História oral 2. Pesquisa qualitativa 3. Congressos I. Título.
CDD 394
___
Ricardo Santhiago (Unifesp; EACH/USP)
Alejandra Luisa Magalhães Estevez (UFF)
Ana Maria Camargo (FFLCH/USP)
Ana Maria Mauad (UFF)
Andrea Casa Nova Maia (UFRJ)
Bernardo Buarque (CPDOC/FGV)
Carlos Eduardo Pinto de Pinto (UERJ)
Daisy Perelmutter (EACH/USP)
Elizabete Marin Ribas (IEB/USP)
Joana Barros (Unifesp)
Juliana Muylaert Mager (UFF)
Juliana Pedreschi Rodrigues (EACH/USP)
Juniele Rabêlo de Almeida (UFF)
Lívia Morais Garcia Lima (Unifesp)
Marcel Diego Tonini (CRFB/MF)
Marcela Boni Evangelista (USP)
Marcelo Vilela de Almeida (EACH/USP)
Maria Sílvia Duarte Hadler (CMU/Unicamp)
Marina Mesquita Camisasca (Unifesp)
Marta Gouveia de Oliveira Rovai (Unifal)
Martin Jayo (EACH/USP)
Miriam Hermeto (UFMG)
Ricardo Santhiago (Unifesp; EACH/USP)
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira (Cefet-RJ)
Soraia Ansara (EACH/USP)
Suzana Lopes Salgado Ribeiro (Unitau)
Wladimyr Sena Araújo (Unirio)
Associação Brasileira de História Oral (ABHO)
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP)
Centro de Memória Urbana (CMUrb/Unifesp)
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória (GEPHOM/EACH-USP)
Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI)
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Ricardo Santhiago, Diretor Regional Sudeste da Associação Brasileira de História Oral
Valéria Barbosa de Magalhães, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, USP
Daisy Perelmutter, Pós-doutoranda junto ao GEPHOM-USP
Marcelo Vilela de Almeida, Curso de Lazer e Turismo / ProMuSPP
Martin Jayo, Curso de Gestão de Políticas Públicas / ProMuSPP / PPG Estudos Culturais
Juliana Pedreschi Rodrigues, Curso de Lazer e Turismo / ProMuSPP
Ricardo Santhiago, PPG Estudos Culturais
Soraia Ansara, ProMuSPP
Valéria Barbosa de Magalhães, Curso de Lazer e Turismo / ProMuSPP
Daniel Lopes Saraiva, Universidade de São Paulo
Joana Barros, Universidade Federal de São Paulo
Juniele Rabêlo de Almeida, Universidade Federal Fluminense
Lívia Morais Garcia Lima, Universidade Federal de São Paulo
Miriam Hermeto de Sá Motta, Universidade Federal de Minas Gerais
Marta Gouveia de Oliveira Rovai, Universidade Federal de Alfenas
Natália Batista, Pesquisadora independente
Priscila Ferreira Perazzo, Universidade Municipal de São Caetano do Sul
Ana Maria Mauad, Universidade Federal Fluminense
Andrea Casa Nova Maia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Angela Maria de Castro Gomes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense
Bernardo Borges Buarque de Hollanda, Escola de Ciências Sociais
Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira, Instituto Federal de Minas Gerais, Betim
Maria Sílvia Duarte Hadler, Centro de Memória-Unicamp
Marieta de Moraes Ferreira, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Mario Sergio Ignácio Brum, Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca e Laboratório de Estudo da História dos Mundos do Trabalho
Syrléa Marques Pereira, Pesquisadora independente