Vozes que se levantam do chão
Prefácio por
Alfredo J. Gonçalves, Cs.
As pesquisas reunidas nesta rica coletânea – com o título “Tecendo vidas e sonhos” – mergulham suas raízes mais profundas num solo ambíguo: deserto e fecundo ao mesmo tempo. Com o auxílio da literatura regionalista nordestina, quando nos referimos ao deserto, podemos tomar como exemplo os quadros rudes e pungentes da obra “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, onde os retirantes, a cada esquina, se deparam com o sofrimento e a tragédia, num caminho sem retorno e com a esperança praticamente extinta. O termo fecundo, por sua vez, nos faz acompanhar o poema e a viagem de João Cabral de Melo Neto nas páginas de “Morte e vida Severina”, do sertão para a zona da mata, passando pelo agreste. Neste caso, mesmo tropeçando com a morte em cada curva do caminho, ao final prevalece o sonho natalício da vida, frágil, mas revestida de luz.
1. Saber escutar com o coração
Desde o ponto de vista científico, e no cenário abrangente do fenômeno migratório, as entrevistas de Marilda Aparecida Menezes comportam três características absolutamente indispensáveis ao que se convencionou chamar de “histórias de vida”: a) uma escuta qualificada, onde o migrante tem a possibilidade de se expressar, de forma livre e direta, a partir da própria trajetória e experiência de vida; b) uma ponte origem-destino entre os lugares de saída e de chegada dos respectivos migrantes, na luta por um lugar ao sol; e c) uma honesta empatia com essas vozes que, levantando-se do chão, clamam pelo céu azul da justiça e da paz.
A escuta qualificada pressupõe o respeito incondicional diante de quem fala. Verbalizar é sempre uma forma de exorcizar feridas, sombras e fantasmas que rondam o passado, o que requer tempo e método adequados. O modo de ver a própria existência, com o mapa aparentemente incongruente de suas trajetórias, com suas idas e vindas, tem prioridade sobre a interpretação do entrevistador. Daí a necessidade da gravação, da transcrição e da fidelidade à sua palavra originária e primordial, como veremos no decorrer destas páginas. Nelas, desfilam diante do leitor, nomes e sobrenomes, rostos, histórias, saudades e lembranças revistas de lágrimas, suor e sangue.
O fenômeno das migrações, de uma forma ou de outra, ocorre entre dois ou mais polos. Lugar de saída e (às vezes lugares) de chegada. Se é certo que o migrante, em seu vaivém, constrói uma ponte de sobrevivência entre a terra natal e a região/país para onde transporta seus sonhos, também é correta a preocupação do estudioso ou agente sócio-pastoral em construir uma espécie de ponte origem-destino de tais deslocamentos, no sentido de melhor compreendê-los em sua complexidade. Disso resulta, como logo se verá, o “encontro com pessoas nos dois espaços – Sertão Paraibano e ABC paulista – distantes fisicamente, mas com elos sociais de proximidade”.
No contato vivo com os migrantes, a honesta empatia para com suas experiências, sejam elas bem ou mal sucedidas, consiste em uma forma de compromisso para com a verdade daquilo que o outro tem a dizer. Marilda escreve: “me apaixonei desde então pelo trabalho de campo, em conhecer os lugares de trabalho e vida nas áreas rurais e urbanas; ouvir e dialogar com as pessoas”. Voltamos, assim, à escuta qualificada, onde o diálogo com o outro, embora mantendo a distância científica, substitui a indiferença pelo afeto e a solidariedade. Se, por uma perspectiva, o outro tem sua palavra e esta não pode ser distorcida e menos ainda falsificada, de outra, a mesma palavra pode ser situada e potencializada no quadro mais amplo de determinado momento histórico.
2. Urbano e rural, fronteiras fluídas
Em “Tecendo vidas e sonhos”, evidencia-se um aspecto relevante no campo das migrações: a relação e o intercâmbio recíproco entre o campo e a cidade. Ou seja, o universo urbano não coincide com os limites da cidade. Ele a inclui, mas a ultrapassa. Tem-se presente, de imediato, que a expressão universo urbano aponta não para um conceito geográfico-territorial, mas para um modo de ser, uma visão de mundo ou uma mentalidade, hoje predominante no mundo contemporâneo. A bem dizer, tem linguagem própria, valores e expressões culturais distintas, que tendem a se estender tanto à cidade quanto nos recantos mais longínquos do mundo rural. Por uma parte, não é difícil encontrar no sertão da Paraíba, e de outros estados, modos de ser, de falar, de vestir típicos do meio urbano; e inversamente, com frequência podemos encontrar no centro das metrópoles núcleos rurais em que se preservam os costumes “lá do Norte”.
Dois exemplos pessoais, se me permitem os autores e os leitores. Por cerca de dez anos, exerci um trabalho pastoral na favela do Iguaçu, localizada na zona leste de São Paulo. A quase totalidade de seus moradores originava-se de Serra Talhada, sertão de Pernambuco. Depois, por cerca de cinco anos, trabalhei num cortiço da rua do Carmo, centro de São Paulo, porta de entrada para os baianos que chegavam do município de Ipirá, Bahia, os quais, em geral, trabalhavam nos serviços domésticos, as mulheres, e na construção civil, os homens.
Nos dois casos, ao entrar naqueles ambientes, era nítida a sensação de ser transportado para o sertão de Pernambuco e da Bahia, respectivamente. Na favela e no cortiço, o modo de falar, as notícias que circulavam e as novidades que podiam interessar mais intimamente as pessoas provinham do lugar de origem. Notava-se, entre origem e destino, uma comunicação intensa e recíproca, seja por carta ou por telefone. Falava-se, respectivamente, uma espécie de “pernambuquês ou baianês”, se nos é lícito falar deste modo. Certa vez, ao fazer uma viagem de São Paulo a Ipirá, na ida, levei uma dúzia de cartas, vários recados e lembrancinhas notadamente religiosas; na volta, vim carregado de bolos, biscoitos, rapadura, queijo, entre outras iguarias da região.
No coração e na periferia da maior metrópole do país, o nordestino reproduz o “universo rural”, ao mesmo tempo que, quando visita os parentes nos lugares de origem, introduz aí valores e símbolos do “universo urbano”. Recorrendo uma vez mais à literatura, faz lembrar a obra “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Em uma frase, urbano e rural são dois modos de ser que se entrelaçam, se mesclam, se fundem e se fecundam. não somente através da televisão, do rádio, do telefone ou agora da Internet, mas sobretudo pelo vaivém dos migrantes.
3. Fuga que se converte em busca
O olhar do analista sobre o fenômeno das migrações, e em particular sobre o migrante, tende a carregar as tintas na vitimização deste último. Evidente que, entre as motivações que levam grande parte das pessoas a deixar a própria terra natal, estão a violência, seja ela de caráter religioso, político ou ideológico; a pobreza, como carência de bens estritamente necessários; a falta de oportunidades, no que diz respeito ao trabalho, à educação e à saúde, o que pode degenerar em doenças, miséria e fome; as catástrofes climáticas, cada vez mais extremadas, como estiagens e inundações. Em tudo isso, sem dúvida, o migrante torna-se uma vítima das adversidades que vão se somando até decidi-lo pela migração.
Marilda Aparecida Menezes e Jaime Santos Junior, entretanto, mostram que todo migrante, mesmo cercado das circunstâncias mais adversas, sempre encontrará espaço para dizer sua palavra. Em última instância, e não obstante os obstáculos, cabe a ele o “sim” ou “não” sobre ficar ou partir. Ao direito de migrar, com efeito, corresponde o direito geminado de permanecer. Sem desconhecer os fatores de expulsão, nem a dificuldade de manter uma cidadania originária, os autores têm presente alguns aspectos que fazem do migrante não apenas uma vítima, mas também um sujeito e artífice da própria trajetória, como também um protagonista e um profeta da história. Em lugar de uma atitude meramente passiva, não raro, o migrante sabe como fazer da fuga uma forma de nova busca, usando as pedras do caminho como degraus para seguir em frente. Os aspectos que se seguem encontram-se interligados na travessia dos migrantes. Se os separamos momentaneamente, é porque apresentam características convergentes, sim, mas diferenciadas.
Migrante sujeito. Certo, sua fala pode ser ambígua e enganosa. Quantas vezes ele repetirá que, num determinado dia, mês e ano decidiu partir e enfrentar nova vida em outro lugar! É notório que, por trás dessa decisão, uma série de fatores convergem para levá-lo a sair, quer de forma temporária, quer definitivamente. Uma coisa, porém, não dá para escamotear. Por que tantos outros, em lugar de fazer o mesmo, permaneceram agarrados ao solo e à pátria? Em outros termos, por mais que os riscos e adversidades cresçam ao seu redor, sempre resta uma razão própria, única e irrepetível que o faz tomar a decisão pessoal ou familiar. Neste caso, não se trata de assegurar maior ou menor tenacidade a quem parte ou a quem resolve permanecer. Em meio a determinadas encruzilhadas, ambas as decisões – migrar ou ficar – exigem grande dose de coragem.
Migrante artífice. No ABC paulista, são muitos os prédios, comércios, casas, estradas e bairros inteiros que se devem à contribuição dos paraibanos e dos nordestinos em geral. Lágrimas, suor e sangue de inúmeros migrantes, nos centros urbanos ou nas periferias, estão sepultadas juntamente com seus restos mortais. Não é só isso, contudo, que torna o migrante um artífice das relações sociais, de culturas e até de civilizações. Para além dos tijolos, edifícios e objetos fabricados, para além de vidas quebradas, existem as expressões religiosas e culturais que enriquecem a sociedade que os recebe. Os valores de uma e de outra cultura, ao se encontrar, se confrontar e entrar em diálogo, podem depurar seus vícios, purificar o que há de mais sagrado em cada uma delas. O encontro sempre oportuniza um recíproco enriquecimento. Todo hóspede é também anfitrião: recebe e oferece dons e dádivas.
Migrante protagonista. Ultrapassar os limites da própria região é abrir novos caminhos, ampliar horizontes mais amplos. O futuro e o incógnit costumam nos amarrar pelas correntes do medo. A coragem para enfrentar esses dois desconhecidos, somada à tenacidade e à teimosia, cortam veredas no grande sertão urbano, parafraseando Guimarães Rosa. Os migrantes deixam suas digitais tanto no sertão paraibano quanto nas ruas e praças do ABC paulista, lá e cá, tecendo vidas e sonhos. Por isso é que, de uma maneira ou de outra, romper fronteiras é quebrar grilhões, numa perspectiva libertadora de um futuro sem exploração nem escravidão. Aventurar-se numa travessia “por mares nunca dantes navegados” (Camões, 2008, p. 17), para usar a expressão do poeta português Luiz de Camões, é cimentar as rotas do amanhã, quem sabe de um amanhã recriado. Com razão diz outro poeta: “Caminheiro, não há caminho; o caminho se faz caminhando”.
Migrante profeta. Nas páginas bíblicas, o profeta do Antigo Testamento é o mensageiro de Deus que denuncia os males e injustiças e, ao mesmo tempo, anuncia os novos tempos da libertação e da salvação. No universo indígena, trata-se de buscar “a terra sem males”. Nos escritos de Karl Marx e F. Engels, entre outros, vislumbra-se o horizonte de uma sociedade comunitária. Assim, o migrante pelo simples fato de migrar, implícita ou explicitamente, denuncia, mais do que a estiagem e a seca, a cerca; isto é, a estrutura fundiária do sertão nordestino que, privilegiando os grandes proprietários, lhe negou o status de uma cidadania plena, digna e justa. Denuncia também os lugares de trânsito, com suas leis e fronteiras pavimentadas pela violação dos direitos humanos.
Por outro lado, o migrante anuncia na região de destino, de modo particular o sudeste brasileiro para o “nortista”, a necessidade de mudanças urgentes e profundas nas relações trabalhistas, na economia do lucro e da acumulação capitalista e na distribuição da renda e da riqueza. Assimetrias e desigualdades sociais entre regiões e povos constituem uma das causas mais frequentes do êxodo em massa. Os trabalhadores e trabalhadoras correm atrás dos ventos do capital, tentando a própria sobrevivência com as migalhas que caem da mesa de um punhado de milionários ou bilionários.
O ato de migrar por si só interpela o status quo da ordem regional, mundial e internacional: os passos do migrante, ainda que titubeantes, apontam para a urgência de abrir portas de acesso a um mundo de justiça e dignidade. O Papa Francisco tem denunciado a “globalização da indiferença, nesta economia que exclui, descarta e mata”, a qual, ainda segundo o pontífice, deve ser superada pela “cultura do encontro, do diálogo, do confronto e da solidariedade” (Papa Francisco, carta encíclica Laudato Si). E faz questão de acrescentar o “cuidado com nossa casa comum”.