I Simpósio Internacional Arquivo, memória e corpo
Atribuir valor artístico ao cinema não é apenas reconhecer uma linguagem própria, uma gramática específica e um campo de competência autônomo, mas, sobretudo, vinculá-lo a outras artes (literatura, música, teatro, pintura, arquitetura ou fotografia), fazendo do cinema uma forma de escrita artística, cujos dois modos principais são a adaptação e a reescrita. Essa inter-relação das artes cria um novo tipo de documento ou arquivo, uma nova consideração da memória e uma relação diferente com a realidade. É isso que gostaríamos de mostrar e desenvolver neste projeto: a interação do cinema com as outras artes produz uma espécie de arquivo sui generis, histórico e estético. Esses novos arquivos, especificamente cinematográficos, por um lado, transformam a relação com os objetos e obras que retomam ou reescrevem e, por outro, abrem questões metodológicas e epistemológicas relativas aos seus usos e respectivos contextos. Podemos ver isso com Vertov e Eisenstein, nos anos 1920, com o Neo-realismo italiano do pós-guerra (como Rossellini), nos anos 1960 com Chris Marker, Agnès Varda ou Jean-Luc Godard, ou no Cinema Novo, com Glauber Rocha, Nelson Pereiro dos Santois, Carlos Diegues e Joaquim Pedro de Andrade..
Arquivos de filmes não são objetos abstratos ou intangíveis e não constituem uma massa inerte de declarações, imagens ou documentos anônimos. Ao contrário, eles estão vivos, estão constantemente se organizando e se reorganizando. Eles são o tema de uma obra quase infinita de reescrita, cuja adaptação literária ou teatral é apenas um modo entre muitos. Devem, portanto, ser entendidos como objetos em transformação, como efeitos de reescrever, retrabalhar ou citar. Esses arquivos fazem parte de uma determinada construção discursiva, que contém um real poder de criação. Inventam uma nova consideração da memória, capaz de produzir o próprio acontecimento que arquivam, como diz Jacques Derrida em Mal d´Archive, que sublinha a importância de se pensar os meios de comunicação do arquivo. Ele fala de um "terremoto arquivístico", que produz efeitos hipomnésicos: [...] a estrutura técnica do arquivo arquivístico também determina o conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento produz tanto quanto registra o evento. Esta abordagem permite repensar as ligações entre cinema e arquivo. Os filmes já não são apenas obras que contêm arquivos, que os mostram ou comentam, mas tornam-se eles próprios arquivos pelo próprio processo da sua produção.
O interesse por arquivos de filmes é muito atual. No entanto, isso não decorre apenas de uma política de abertura por parte das instituições culturais, mas sobretudo do poder político que os arquivos podem exercer sobre a compreensão da realidade, da sociedade e da escrita da história. Trata-se, portanto, de estender o campo epistemológico dos arquivos para além do quadro historiográfico, para colocá-los no domínio da estética e, assim, repensá-los do ponto de vista de uma história das formas cinematográficas. O arquivo de filmes deixou de ser um simples documento útil para a historiografia, que se reduziria a uma primeira informação ou primeiro passo de um processo de demonstração. Pelo contrário, este arquivo permite considerar o tempo do filme na sua relação com o presente, com a experiência, com o conhecimento, mas também com o sujeito que vê e mostra o que vê. Não há história do cinema sem uma história dessa perspectiva arquivística e de sua formação artística.
3 de novembro de 2022, 09h00 até 5 de novembro de 2022, 14h00
Universidade de Brasília - Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília - Distrito Federal
Transmissão online via www.youtube.com
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