Local: IFAC - Departamento de Filosofia
Cíntia Vieira da Silva (UFOP)
"Estética e contrassexualidade: trânsitos de Preciado"
Em Testo Junkie, Preciado narra seu encontro com a testosterona. A experimentação da substância envolve experimentos literários, de escrita. Num primeiro momento, como atividade que escoa a energia extra provida pela testosterona sintética e que acompanha a solidão de uma clandestinidade não apenas fantasiosa, mas real, pois o uso e venda dessas substâncias chamadas de hormônios sexuais é, quando não proibido, controlado. Elas não são acessíveis a todo mundo e nem em quaisquer quantidades. Parece haver ainda mais nesse agenciamento de testosterona e escrita: a autora que escreve contra a naturalização do sexo, das práticas sexuais e do gênero e em prol da exploração de práticas capazes de subverter a identidade sexual, em consonância com sua experimentação vital leva esse pensamento e modo de vida um passo além, em busca de práticas de desidentificação. A testosterona não é um veículo para produzir um corpo que seja conforme a uma identidade desejada, mas para experimentar eventos corporais inauditos. O que Preciado chama de desidentificação é produção molecular, micropolítica, de subjetivação e passa por um estranhamento de si.
Se, após a descoberta (ou invenção) dos hormônios sexuais, a constituição de gênero passa a ser mediada por drogas da indústria farmacêutica, como a pílula anticoncepcional, num processo concomitante à proliferação de imagens pornográficas igualmente modeladoras de papéis de gênero no exercício da sexualidade, seria preciso adquirir o controle das potencialidades farmacológicas de hormônios e outras substâncias, e da produção de imagens libertas do padrão normativo binarizante. As pretensões que Preciado descreve como uma “plataforma” – e poderíamos chamar de programa micropolítico – pareceram-me fascinantes. Não só pela sua potencialidade conceitual, constituindo um instrumental para escapar ao pensamento confinado ao binarismo de gênero, mas também por sua coerência em relação ao que já se anunciava em Manifesto contrassexual.
Qual não foi minha surpresa ao saber que Preciado tinha se engajado num processo de transição e, em 2016, dois anos depois da publicação de Testo Junkie, entrado com processo judicial para requerer identidade masculina. Obviamente, mudanças de posição ocorrem e exigir a manutenção da mesma posição da parte de uma filósofa, agora filósofo que defendia a desidentificação parece, no mínimo, exagero. Contudo, não se trata de uma posição qualquer, mas justamente da assunção, ao menos jurídica, de uma identidade. Para além de uma exigência de coerência, a questão me interpelava. Um primeiro elemento que me parece desfazer a impressão de mudança de posição radical é que a transição não leva de um polo da oposição binária outro.
A transição não é vista como um processo que resulta numa identidade fixa, mas como experiência que configura uma subjetividade em trânsito, que não se acomoda às categorias do binarismo. Transicionar é também uma experimentação micropolítica e estética. As implicações estéticas da transição, ou melhor, da produção de um corpo trans dizem respeito à ruptura em relação aos padrões da “estética heterossexual penetrante-penetrado” (UAU, p. 248), para usar uma expressão de Preciado e também concernem práticas que, se não são diretamente artísticas, são ao menos vizinhas a elas. O combate aqui travado se faz em prol da chegada do “tempo da estética contrassexual definida não por leis de reprodução sexual ou de regulação política, mas por princípios de complexidade, singularidade, intensidade e afeto” (UAU, p. 250), ou seja, uma estética pautada por valores definidos pelo aumento da potência de fruição dos corpos, não pela adequação a qualquer norma.
Entretanto, há outros aspectos que delineiam uma dimensão estética relativa à transição. Primeiramente, podemos falar de uma estética da existência, segundo o conceito foucauldiano, que abrange a produção de modos de subjetivação de maneira geral. No caso de um corpo e de uma subjetivação trans, porém, o caráter de fabricação e criação envolvido na constituição de si se torna mais evidente. Preciado aborda a possibilidade de tomar a subjetividade como obra numa crônica intitulada Casa vazia. Ao longo das crônicas, acompanham-se suas inúmeras viagens e em vários momentos o autor nos diz que não tem dormido muitos dias seguidos no mesmo lugar. Nesta crônica, conta-nos que permanece numa casa alugada por um período inédito nos últimos tempos. A casa, porém, é deixada vazia, sem mobília nem adorno algum. Preciado estabelece então uma relação entre seus hábitos nômades, a casa vazia e a transição.
Essa subjetivação dissidente, portanto, entretece-se com a escrita, como vimos mais de perto no caso de Texto Junkie, aproxima-se da encenação, toma a música como metáfora, mas também, na medida em que envolve incursões em âmbitos institucionais e questiona parâmetros dessas instituições, não se distancia de algumas obras de arte contemporâneas. O modo como Preciado narra algumas ocasiões em que atravessa uma fronteira com passaporte de Beatriz Preciado, mas já com um corpo que não corresponde a essa identidade feminina faz pensar em performances, happenings e outras tantas manifestações artísticas semelhantes.