Local: Auditório 3
Dentro do campo da ética aplicada à pesquisa histórica, a análise de fontes é um ponto de partida crucial para a compreensão de qualquer período histórico específico. Isso sublinha a importância fundamental da documentação na pesquisa historiográfica. Além das fontes documentais, o historiador deve utilizar métodos de pesquisa que permitam extrair o máximo de informações disponíveis dessas fontes.
Levando isso em consideração, o historiador poderia se perguntar: "A Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) pode ser entendida como documentação histórica pertinente à pesquisa?" Alguns pontos antagônicos a tal proposta podem ser os seguintes: 1- O texto bíblico é, em muitos momentos, teologizante, ou seja, coloca a divindade como sujeito ativo de muitas narrativas. 2- O texto bíblico é considerado sagrado para algumas tradições religiosas contemporâneas, o que gera um receio de que o pesquisador que a utiliza faça uma defesa "religiosa" do conteúdo que ela propõe.
No entanto, a pesquisa histórica especializada em Israel e Judá, atualmente, tem proposto metodologias para o uso do texto bíblico como documentação histórica, visto que, para a História Antiga de Israel e Judá, a Bíblia Hebraica se apresenta como um recurso documental relevante para o historiador, uma vez que contém uma quantidade significativa de informações relacionadas a essas sociedades antigas.
Para o uso histórico do texto bíblico, o mesmo não deve ser entendido como "inerrante" ou "revelado". Ele deve ser entendido como qualquer outra documentação antiga. Além disso, como proposta metodológica, aquele que se propõe a usar o texto bíblico como documentação deve se ater ao contexto histórico em que o texto por ele estudado foi escrito, visto que um determinado texto vai ter muito a dizer sobre o momento histórico que o produziu.
Deve-se levar em conta a distinção entre “Tempo da narrativa” e “Tempo do narrado”. O Tempo da narrativa é o momento em que determinado texto foi escrito, e o tempo do narrado é o momento em que o conteúdo que o texto remete ocorreu. Por exemplo, um texto escrito no século VII a.C., pode fazer referências a acontecimentos supostamente ocorridos no século X a.C. Mas, diante da distancia temporal que pode haver, e na maioria das vezes há, entre tempo da narrativa e tempo do narrado, o texto vai dizer mais sobre o contexto que o produziu que sobre o tempo da narrativa que ele remete.
Por fim, apesar de algumas passagens bíblicas serem teologizantes, cabe ao historiador compreender que a forma como os antigos escreviam era muito característica do seu contexto histórico. Portanto, o pesquisador, ao lidar com tais textos, deve se esforçar para extrair da documentação informações pertinentes, fazendo-a "falar".
O presente minicurso busca apresentar possibilidades e metodologias de uso do texto bíblico como documentação histórica para a antiguidade de Israel e Judá. Para isso, primeiro faremos um balanço sobre as supostas "dificuldades" de uso do texto bíblico como documentação, conforme apresentado anteriormente. Depois, faremos uma apresentação sobre as possíveis "respostas" a tais dificuldades, baseados não só na historiografia especializada no tema, mas também em textos de metodologia e pesquisa histórica.
]Logo após essa parte mais metodológica, faremos dois pequenos estudos de caso, onde mostraremos como um determinado texto bíblico pode trazer informações relevantes ao historiador. Primeiro, versaremos sobre o texto de 1 Samuel 16,18, onde o autor bíblico diz que "Iahweh estava com Davi". O texto foi, provavelmente, produzido no século VII a.C., momento onde Davi já havia morrido, mas seus descendentes (fundadores da dinastia davídica) desejavam fortalecer o seu poder em Judá. Para isso, eles exaltaram a figura do "fundador" da dinastia como sendo um rei que caminhou de acordo com os caminhos de Iahweh, para criar a imagem de que a divindade legitimava as ações monárquicas davídicas.
O segundo texto que apresentaremos será Deuteronômio 6,4-5, onde se diz que Iahweh é um e que o adepto ao culto dessa divindade deve amá-lo de todo coração. Esse texto também deve ser entendido no contexto do século VII a.C., e a ênfase que o autor bíblico dá no amor (entendido aqui como obediência) para com Iahweh, salienta a obediência ao "representante" terreno da divindade, ou seja, o rei. Então, o referido texto apresenta subsídios para o nosso melhor entendimento sobre a forma como os davídicos tentaram centralizar o seu poder no referido recorte histórico.
Ou seja, por mais que os dois textos referidos acima narrem acontecimentos que, supostamente, ocorreram antes do século VII a.C., eles tem muito a dizer sobre o momento histórico em que foram produzidos.
Depois dessa apresentação, nos propomos em trabalhar com outro texto, só que de uma forma distinta. Abordaremos o texto de 2 Reis 17ss, que fala sobre o exílio de Israel pelo império assírio. Depois da breve leitura desse texto, apresentaremos algumas fontes assírias que falam sobre o mesmo evento, só que a partir da perspectiva assíria. O objetivo disso é demonstrar que os textos bíblicos trazem o ponto de vista de seus autores sobre os eventos, mas os povos que são citados nos referidos eventos também têm a sua própria forma de narrar.
Por fim, falaremos como a arqueologia pode colaborar com o historiador que deseja trabalhar com o texto bíblico, visto que ela fornece, por meio da cultura material (vasos, estelas comemorativas de batalhas, ostrakos, edifícios, etc.), fontes que podem servir como contraponto aos textos. A cultura material pode confirmar ou contradizer o conteúdo dos textos bíblicos. Por exemplo, a Bíblia diz que durante o reinado de Davi e Salomão, havia um grande reino que compreendia os territórios de Israel e Judá. No entanto, a arqueologia não apresentou provas contundentes do referido reino, o que faz com que, provavelmente, o referido reino não seja historicamente verificado. Mas, quando ocorre de a arqueologia "contradizer" algumas informações bíblicas, o historiador não deve descartar o texto, mas sim se perguntar: por qual motivo se escreveu sobre isso? Certamente, não foi "do nada". Podemos tentar rastrear as raízes de composição do determinado texto, bem como suas ideologias.
Ao longo do minicurso, abordaremos algumas áreas do saber que podem colaborar com o historiador que deseja trabalhar com o texto bíblico como documentação histórica. Além da já citada arqueologia, a exegese bíblica também é imprescindível na pesquisa, visto que ela pode ajudar a melhor visualizarmos a temporalidade histórica em que o texto trabalhado foi escrito, ajudando na percepção das ideologias próprias que o formaram. A Ciência da Religião também pode colaborar profundamente com o historiador, visto que ela pode nos ajudar a melhor compreender o que é "religião", uma vez que as sociedades antigas (não só Israel e Judá, mas também Egito, as polis gregas, Roma, etc.) eram profundamente religiosas, e para o melhor entendimento das mesmas, precisamos levar em consideração o fator religioso, tão caro a elas.
O minicurso se propõe, assim, a fazer um caminho que se iniciará com debates referentes ao lugar das fontes e da metodologia de pesquisa na História, passando por algumas pequenas apresentações de estudos de caso e finalizando com a apresentação de algumas áreas do saber que podem ajudar na melhor compreensão da Bíblia Hebraica como fonte. Com isso, nos propomos a abrir os horizontes de pesquisa para os historiadores interessados nessa temática, sintetizando os debates historiográficos atuais sobre a compreensão da Bíblia Hebraica como documentação histórica. Além disso, buscamos introduzir no mundo da pesquisa sobre a antiguidade de Israel e Judá os historiadores que tenham algum interesse sobre o assunto, mostrando que essa forma de pesquisa é possível e evidente dentro da Ciência Histórica.