Em 1905, aos 16 anos, Américo Jacomino, o Canhoto, compunha aquela que seria uma obra obrigatória do repertório violonístico brasileiro: Abismo de Rosas. Elegante valsa de salão, acena a uma Belle Époque citadina de boas maneiras e maneirismos em tom cortês. Pouco se conhece a versão cantada, que trata da desventura amorosa do jovem compositor.

Em 1968, o cantautor Geraldo Vandré apelaria às flores para chamar a população à reação e resistência face à repressão imposta pelo período militar: “Indecisos cordões ainda fazem da flor seu mais forte refrão e acreditam nas flores vencendo o canhão”. Novamente as flores: desta vez, cravos seriam usados, em Portugal, para mudar a história: a Revolução dos Cravos (1974). A imagem marcante da boca de um canhão com um cravo no lugar de uma bala tornou-se um ícone. E por Portugal recordamos que a Virgem Maria era a Rosa Mística, com a qual fez-se a marca da colonização, e escravidão, cantando suas "virtudes" em motetes e missas, mas também em versos do cancioneiro popular.

Percorrendo esse florilegium musicæ, deparamos com um outro lado. Em 1978, em meio ao recrudescimento da ditadura militar, os Secos e Molhados perguntavam insistentemente: “Que fim levaram todas as flores?”. Nessa mesma época, o “Rei” Roberto Carlos estreava no Canecão com uma big-band. De cantor de iê-iê-iê, investe na imagem madura, tomando como exemplo os shows de Frank Sinatra. Dentre os destaques, As flores do jardim da nossa casa; de cunho íntimo e melancólico, contrastando com as “flores astrais” dos Secos e Molhados. “Desbunde” e verve conservadora, simultaneamente, angariavam um público crescente, sempre apelando às flores…

Mais recentemente, em 2013, o grupo Confronto lança a canção heavy metal Flores da guerra, aludindo a heroínas afrodescendentes guerreiras. “Todas se fundem numa só: Xica, Dandara, Maria, Anastácia… Negra, guerreira. (...) Esquecida na história (...) A bela flor. Que sangra pela Guerra (...). A pureza. No ódio. Nas trevas. A resistência se mantém por elas! Cuida, cria, chora. Perfuma. Decide, enfrenta. Luta!”

Pela denotação e, sobretudo, pela conotação, imagens doridas se associam ao belo: flor de fango, lírio do lodo acena à pobreza e prostituição, cravo e a rosa vermelha à passionalidade transbordante. E assim vemos como as flores se lançam às divas, como Maria Malibran ou Augusta Candiani… heroínas da vida representada, consumidas por suas vozes. Também as ideologias se valem das flores para lançar suas pautas (rosa vermelha, copo-de-leite). A também vermelha tulipa remete ao amor verdadeiro, mas também é símbolo de guerra; fonte do ópio viciante, mas analgésico, anestésico, hipnótico, sedativo. O que para Rimbaud ou Artaud servia para estimular a criatividade, serve também para o entorpecimento, o embotamento dos sentidos - quando não resta senão a fuga ou o conformismo, face a uma realidade mórbida. Nas ambivalências das flores, lançam-se mais do que vidas vivas arrancadas da terra. Desterradas, lançam-se em símbolos...

E pelos símbolos podemos falar das paixões... Elas estão quase sempre associadas a canções de cunho amoroso. Existe um cancioneiro imenso que remonta à ambiência noturna-soturna da ambiguidade simbólica das flores. Na cultura latino-americana, os boleros, tangos e sambas-canções são exemplos que nos levam a sentir o perfume de gardênia: “Te quero! Te adoro...” as palavras exploram todo o potencial sinestésico floral. Já dizia Newton Mendonça que o amor e o sorriso, tal como a flor, se transformam depressa demais... muitas vezes, basta virar o disco, como o LP de Silvio César, de 1969, que de um lado declara “Eu te amo” e do outro pragueja, “Quero que você morra”.

Esses sentimentos extremados atrelados às flores encontram terreno fértil no imaginário melodramático latino: a rosa dos tangueiros, seladora de destinos; uma Bossa interpretada por Maysa obscurece o cantar das flores à janela e esgarça qualquer ritmo e andamento, sem alterar uma batida sequer, “por causa de você” ... ou de quem quer que seja.

Os exemplos são inúmeros e se alastram pelo mundo ao longo dos tempos. Os espinhos ferem... Mas falamos também das macias pétalas, da forma, das cores e do perfume. Por que as belas flores estariam relacionadas a acontecimentos e experiências malsãs? Por que amores e ódio se juntam a flores? Quantos malmequeres a história terá registrado e ainda aguarda para anotar? E quando experiências musicais não nos conduzem a uma ambiência floral idílica, e sim a um sufocamento da capacidade de expressão - ao calar e ao cerceamento da voz política de um povo ou grupo social? Ainda, para além de quaisquer imagens binárias, não seriam as flores também construtos imaginários ambíguos e polivalentes, prestando-se a usos que desafiam as categorias de conformismo e resistência, bem e mal, pureza e contaminação? As flores também não impõem seu encanto ao brotarem do e no asfalto?

Em síntese, flores são a mais aveludada e mais espinhosa maneira de falar de ternura e doçura; de rancor e maldizer. Sob um aroma intenso, às vezes beirando o sufocante, elas convidam à vertigem, ao torpor, mas também ao adormecimento das sensações e sentimentos. Extraído o fármaco, pode se transformar em droga poderosa, tal qual a delicada tulipa. Juntando-se às diversas maneiras de criar e pensar música - quer em suas formas autônomas, quer em suas variantes híbridas (audiovisual, teatro, dança, circo etc.) as flores compõem obras que acenam para formas de pensar e viver a vida - quer como droga, quer como inspiração…

Recorremos às flores, ao mesmo tempo veneno e remédio, para motivar as discussões que pautarão o 17º. Encontro Internacional de Música e Mídia. O mundo tem sido palco de acontecimentos que apontam para um retrocesso em relação a conquistas obtidas não raro seculares, cuja bandeira ostentava alguma flor como símbolo: democracia, representada pela igualdade de gêneros, de etnias, respeito e tolerância em relação às manifestações religiosas e diversidade cultural; direito à educação, ao voto, à pluralidade ideológica. O que o mundo presencia hoje é a deterioração dos ecossistemas; o ressurgimento de doenças que se davam como extintas. Pessoas são vítimas de extermínio por motivos banais; falsos mitos são abraçados como santos-mensageiros da verdade. Como se não fosse suficiente, um vírus toma de assalto o planeta, causando desgraça e perplexidade.

Como o século XXI que, com as conquistas obtidas graças ao desenvolvimento das ciências, teria tomado esse rumo em direção a um abismo.... que não seria forrado de rosas? Dentre as diversas justificativas possíveis acreditamos que, em grande medida, tais fenômenos se devem a um desmanche da escolarização – o que implica na formação de professores, nas condições de trabalho, na infraestrutura e, sobremaneira, nas pautas que organizam as diretrizes educacionais. Some-se que a extinção de disciplinas na área de artes em muito contribui para essa falta de capacidade de reflexão. E, dentre as artes, a música, tão presente na vida cotidiana, tem seu quinhão de participação elevado: para além de entretenimento, faz parte da formação educacional básica. É preciso reavaliar este cenário para podermos refletir sobre medidas que venham a oferecer perspectivas futuras mais alvissareiras…

A fim de discutir estes temas e seus desdobramentos, o MusiMid convidou Diósnio Machado Neto (EACH-USP) e Thiago Cazarim (IFG) para ajudar a idealizar as linhas que orientaram os debates deste 17º Encontro, que foi realizado por via digital, com transmissão ao vivo pelas redes sociais.

A programação ofereceu três mesas-redondas de alta qualidade, com pesquisadores, artistas e produtores de reconhecida atuação, a saber pelos links: https://doity.com.br/17encontromusimid/palestrantes e https://doity.com.br/17encontromusimid/programacao/ 

O período da manhã deu voz aos pesquisadores que foram selecionados para apresentação, após submissão de propostas de trabalho, avaliadas por um comitê científico. Propusemos três eixos temáticos que organizarão a programação e a recepção de propostas.

Eixos temáticos:

1- “Abismo de rosas”: Fatores que contribuíram para a configuração do atual cenário mundial. Análise de fenômenos e processos de natureza político-ideológica que levaram a tais consequências e seus protagonistas. O papel das políticas educacionais e culturais, nesse contexto; em particular, a presença/ ausência do ensino de artes.

2- “Para não dizer que não falei de flores…” Reflexões sobre períodos em que liberdades foram cerceadas e direitos cassados. Atitudes, estratégias, proposições poéticas adotadas no sentido de confortar, conformar ou confrontar o estado das coisas.

3- “Vejo flores em você”: artivismos, resistências, reinvenções: novas formas de comunicação e poéticas, visando a manter contato com seu público (fãs, “seguidores”, interlocutores, grupos sociais específicos).

 

O resultado das propostas enviadas podem ser conferidos nestes anais/atas, que nos aprazem de modo incomensurável. Esperamos que os textos sejam úteis a toda a comunidade acadêmica e aos leitores que precisem de informações fidedignas sobre os temas  abordados aqui. 

Agradecemos aos participantes que estiveram conosco e a quem fizer use deste material, o que incentiva a continuidade de nosso trabalho.

 

Centro de Estudos em Música e Mídia - MusiMid.

Comissão Científica e Organizadora

Profª Drª Heloísa de Araújo Duarte Heloísa Valente

Prof Dr. Diósnio Machado Neto

Prof Me. Fernando de Oliveira Magre

Prof Me. Raphael Fernandes Lopes Farias

Prof Dr. Ricardo Santhiago

Prof Dr. Thiago Cazarim
 

musimid17@gmail.com

musimid@gmail.com

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@musi.mid

Coordenação: Heloísa de A. Duarte Valente.

Comitê Científico e organização: Diósnio Machado Neto, Fernando Magre, Raphael F. Lopes Farias, Ricardo Santhiago e Thiago Cazarim.

Equipe técnica: Daniel Trevisan de Araújo,  Felipe Tavares da Silva, Fernando Pedro Moraes.

Arte: Roberto Bispo e Fernando Magre.

Tradução para o inglês: SaraTomazeli Monrroe.