O presente simpósio tem como proposta discutir o desenvolvimento da produção de literatura de autoria de mulheres japonesas. No famoso ensaio de Virginia Woolf de 1929, “Um quarto só seu”, a autora inglesa cita Murasaki Shikibu, entre outras autoras, como exemplo de escritora que desenvolveu de forma original a sua escrita, e que apesar de ser a primeira mulher romancista que temos registro, ainda hoje, é pouco conhecida, ou sequer citada no cânone literário universal. Na atualidade, no entanto, vemos um grande aumento de traduções de autoras asiáticas para a língua portuguesa, e o Nobel de Literatura, laureando a escritora sul-coreana Han Kang, comprova não apenas um avido público leitor, mas principalmente que a produção dessas mulheres foge dos modelos canônicos, masculinos, descrevendo uma realidade que, apesar das diferenças linguísticas e culturais, “não se limita a usar um grande lugar-comum da cultura poética masculina [...] mas enxerta-lhe algo a mais, totalmente imprevisto: o corpo feminino” (Ferrante, 2023, trad. Marcello Lino, p.25). Sob essa perspectiva nos propomos nesse simpósio a discutir as características da escrita feminina produzida no Japão, e seu desenvolvimento durante os anos, destacando similaridades entre as autoras clássicas e contemporâneas, que refletem sua sociedade e época, tendo como objetivo visualizar de maneira panorâmica o desenvolvimento dessa escrita, que destoa em muitos momentos do “lugar – comum” orientalista, e revela um outro olhar sobre ser mulher. 

Nem kawaii, nem submissa: O grotesco feminino na literatura japonesa contemporânea

Joy Nascimento Afonso

Nossa proposta pretende, de maneira suscinta, analisar e relacionar o estilo literário de três escritoras contemporâneas – Minako Oba (1930-017), Yumiko Kurahashi (1935 – 2005) e Yu Miri (1968), que na construção de suas personagens revelam um padrão estilístico, onde seus protagonistas que fogem ao status quo do que seria um “típico japonês”, rompem com a estrutura e modelos impostos, imaginando e criando novas possibilidades de ser e pensar. No conto de Oba, “O sorriso da bruxa da montanha” (Yamanba no bishô), de 1976, a protagonista, uma mulher de classe média, é descrita, desde a sua infância, como aquela que carrega em si, sortilégios, feitiços, reforçando a imagem de que a mulher que de alguma forma, foge ao padrão criado pelo ocidente sobre corpos asiáticos (Said,2007), é vista como bruxa, ou como um ser que deveria viver longe da vida em comunidade. Já a protagonista de Kurahashi, Keiko, uma mãe de família e esposa devota, mantêm “abertamente” uma vida dupla, possibilitada pela abertura ao mundo erótico – onírico no qual, pode se encontrar com seu amante e viver uma noite de paixões. Um desejo que é respaldado na poesia tanka e na fusão do corpo feminino com a árvore de cerejeira, na obra “Sob as flores de cerejeira” (Hana no shita,1994, trad. Meiko Shimon), que representa a liberdade, possível do feminino, por meio da arte e do sentir. Na obra de Miri, é por meio da crítica social que a autora examina as várias camadas das relações humanas afetadas pelo capitalismo. Em seu famoso romance “Estação de Tóquio – Ueno”, o protagonista que nos é apresentado é um homem que após anos de trabalho, humilhações, e percas familiares acaba tornando-se uma pessoa em situação de rua. Sem moradia e vivendo a margem da sociedade, suas experiências pessoais, se mesclam a de outras vozes, sonhos, olhares, desconhecidos na grande metrópole de Tóquio. E o que as três personagens teriam em comum? Todas elas representam à sua maneira vozes que destoam do imaginário do que é ser japonês, do que é ser uma mulher japonesa; representando escolhas que fogem ao modelo capitalista patriarcal. As personagens contemporâneas selecionadas não se sentem intimidadas pelo coro da maioria, mas dissolvendo padrões, possibilitam um outro olhar para às margens.

Seria o estilo de Itô Noe autobiografia ou gênero do eu? Uma análise da narrativa anarquista feminina em Malcriada (1913)

Carolina Benkert

Itô Noe (1895–1923) foi uma das vozes radicais do feminismo japonês no início do século XX, e utilizou a literatura como meio de contestação às normas patriarcais de sua época. Sua escrita, marcada pelo uso de uma abordagem contestatória das normas sociais, oferece uma perspectiva única sobre as vivências femininas de sua época. A análise de seus textos permite não apenas recuperar vozes femininas silenciadas pela historiografia tradicional, mas também ampliar as discussões sobre subjetividade, identidade e os limites entre o pessoal e o político na literatura. Investigando como suas experiências pessoais influenciaram sua escrita e seu engajamento político, esta pesquisa busca compreender a relação entre a vida e a obra de Itô Noe. Inicialmente, examina-se sua trajetória e os eventos que moldaram sua visão de mundo, para então analisar seu papel como editora-chefe da revista Seitô (1911–1916). Por fim, a apresentação se concentrará na análise do conto Malcriada (Wagamama), publicado em 1913 na revista. Nesta narrativa, Itô Noe utiliza a figura de Toshiko, uma jovem que migra do interior para a capital japonesa, de modo a borrar as fronteiras entre autobiografia e ficção, empregando a autoficção como estratégia discursiva para representar experiências femininas. Este estudo analisa como a autora utiliza esse recurso para engajar suas leitoras em um diálogo emocional e político, explorando a maneira pela qual elementos de sua trajetória pessoal transparecem na construção de Toshiko. A relação entre a escritora e a protagonista não se restringe a paralelos biográficos, mas se estabelece como um mecanismo literário para expressar as tensões entre individualidade e estrutura social, pertencimento e transgressão. Ao examinar o conto Malcriada à luz das teorias da autoficção e do feminismo literário, esta análise investiga de que forma Noe subverte convenções narrativas para transformar sua experiência pessoal em um instrumento de resistência e comunicação.

Sayaka Murata e o futuro da vida sexual de todos nós

Sarah Micaia Benevides Figueira

Em The future of sex lives in all of us, um artigo de opinião publicado pelo New York Times em 2019, Sayaka Murata expõe como sua experiência com a construção social do sexo no Japão foi moldando a maneira como ela se comportava com o seu próprio corpo, desde suas explorações sexuais até os discursos que reprime seus desejos ou ausência de desejos chegando na vida adulta. Para a escrito, o sexo, como signo, limita as possibilidades da sexualidade e do corpo em si, e a ideia de um mundo sem sexo é nostálgico, como um retorno para a infância, em que a palavra sexo não significa coisa alguma. Esse desejo de Sayaka Murata por um mundo sem rótulos, linguagem limitadora, é expresso em diversas personagens de suas obras. Assim, o objetivo principal deste trabalho é analisar os aspectos da sexualidade no contexto do Japão contemporâneo nas obras Querida Konbini (2018) e Terráqueos (2021) de Sayaka Murata. De natureza bibliográfica, foram utilizados como aporte teórico Yuko Iida (2019), Daiki Hiramori (2015) e Beatriz Lopes (2020). Há um crescimento contínuo de obras japonesas de autoria feminina traduzidas para o Brasil, e Sayaka Murata é um nome cada vez mais conhecido internacionalmente desde a publicação de Querida Konbini. Dessa forma, a pesquisa atende a necessidade de compreender determinado movimento no âmbito dos estudos literários contemporâneos. O trabalho foi realizado em três momentos: primeiro, compreensão da percepção da autora Sayaka Murata sobre o campo das sexualidades na contemporaneidade, no que se diz a formação de corpos normatizados; segundo, a análise da construção identitária de Keiko Furukura e Natsuki Sasamoto no que concerne gênero e sexualidade; terceiro, a correlação entre o discurso de Sayaka Murata e os desfechos de suas personagens. Compreende-se que, ao observarmos a interação das personagens de Murata com a sexualidade, há incongruências na construção de uma sexualidade ou uma identidade de gênero fixas e estabelecidas, seja em personagens femininos ou masculinos. Embora a autora afirme ser cercada pela normatização de corpos, suas protagonistas, corajosas como são, atravessam com frequência essa fronteira de significados. Essa possibilidade de escolha das personagens em eliminar os rótulos sobre seus corpos expressa um movimento comum no meio queer atualmente, de viver sem amarras em uma sociedade que busca constantemente rotular seus indivíduos em formas extremamente apertadas e limitadoras.

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